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Entrevista com Ferrez: Periferia é a maior vítima dos ataques criminosos

É um erro associar o PCC (Primeiro Comando da Capital) à periferia, que é a maior vítima dos ataques criminosos por sofrer tanto as consequências -como a retirada de ônibus das linhas devido aos incêndios- quanto a estigmatização -a ação policial em busca dos autores dos atentados se concentra nas áreas pobres.

É com a experiência de quem sempre viveu na periferia, mais especificamente no Capão Redondo -bairro da zona sul de São Paulo reiteradamente associado à violência-, que Ferréz, 31, escritor e rapper, critica essa visão de que morador de áreas pobres ou é criminoso ou apóia e se beneficia do crime.

"Em nenhum momento eu ouvi alguém dizendo que foi bom os policiais serem mortos." O PCC, diz ele, fala em nome de seus próprios interesses, não representa o povo, que teme as ondas de ataques. Ele acredita que, se não houver uma revisão do sistema carcerário, achando um meio-termo entre a "linha dura" e a "linha mole", a situação de São Paulo, que já viveu três ondas de ataques, só vai piorar.

De acordo com Ferréz, o "clima é de preparação para o que vai acontecer", mas ele não sabe explicar o que está por vir. Sabe dizer que é preciso olhar para a periferia, pois, afirma ele, "se deixarem as pessoas nesse abandono, o futuro é Mad Max".

A referência ao filme que apresenta um futuro caótico, no qual a violência é banalizada e os bandidos reinam, é, para Ferréz, metáfora de um futuro possível, mas nada desejável e ainda distante da vida da periferia de São Paulo.

Ferréz explica que, quando reclama mudanças no sistema prisional, não está pedindo ""refresco" pra ninguém, não. Mas tá claro na Constituição que o sistema não é punitivo, é pra reabilitar o preso. E o que acontece é que o cara é punido até o osso". Com uma metáfora, resume: "Esse terror é um reflexo do terror que todo mundo já vive. Se você plantar armas, vai colher corpos no chão. Se plantar livros, vai colher bibliotecas".

FOLHA – Considerando a relação com os policiais e a rotina da periferia, o que muda após os ataques do PCC?
FERRÉZ – Muda o clima: fica uma tensão, a polícia fica enervada. Como não se sabe quem é do crime e quem não é, acaba achando que na periferia só tem criminoso. Cria um estigma. A mídia também tem um papel muito cruel nessa história. Ela traz o pânico pro povo daqui, sendo que, muitas vezes, o direcionamento dos ataques não é pra periferia. Parece que é de propósito, pra trazer a guerra mais pra perto da gente, pra fazer as pessoas daqui também terem ódio da facção criminosa.

FOLHA – Já foram três séries de ataques. Qual a diferença de uma pra outra?
FERRÉZ – O revide da polícia depois do primeiro ataque foi o mais triste. A polícia veio pra periferia e pegava quem achava que era criminoso. Quem tinha um boletim de ocorrência, quem tava na rua, sem camiseta e de touca, virava suspeito. Aí o povo pega ódio da polícia, que muitas vezes só tá fazendo seu trabalho. E a polícia está desamparada, o Estado deixou a polícia abandonada. Fica uma guerra de "nóis contra nóis", porque o policial muitas vezes é da periferia, mora perto da favela. Uma vez, um amigo que estudou comigo e virou policial foi abordar a gente: fingiu que não conhecia. Uma semana depois, veio na minha casa pedir desculpas. Nessa guerra na periferia, sabe o que parece? Que somos peões num jogo de xadrez, sempre brigando, e a briga não chega nos cavalos, nos reis.

FOLHA – E quem são os cavalos, os reis?
FERRÉZ – Os cavalos são os políticos; os reis são os donos desse país, as 300 famílias mais ricas. E a gente fica ali, se digladiando… No final, eu olho pra cara de um policial e vejo um moleque de 19, 20 anos, querendo um salário de R$ 800. Ele não deveria ser assassinado por causa disso. E nessa guerra todo mundo é vítima, mas a periferia que trabalha é a mais vítima de todas, porque ela fica encurralada. Não tem ônibus por causa do atentado, então não vai trabalhar. Mas, se acontece um incidente na favela, não chama a polícia, porque não confia. É o tempo inteiro assim, um medo constante. Ao mesmo tempo, a gente já tem uma visão de guerra. Há seis anos, em entrevista que eu e o Paulo Lins demos à Folha, a gente já falava: ou é pela arte, ou pelo terror. A arte não chegou.

FOLHA – E o terror é uma forma de expressão?
FERRÉZ – Minha opção pela arte é clara, mas acho que esse terror é um reflexo do terror que todo mundo já vive. Se você plantar armas, vai colher corpos no chão. Se plantar livros, vai colher bibliotecas. Não acho normal ligar a TV, ver um monte de moleque de cueca passando por uma revista e ouvir que é "só o fim de uma rebelião da Febem". A sociedade aprendeu a achar normal. Mas até quando vai achar normal e virar as costas? Não tô falando que tem que dar "refresco" pra ninguém, não. Mas tá claro na Constituição que o sistema não é punitivo, é pra reabilitar o preso. E o que acontece é que o cara é punido até o osso. Precisa corrigir o sistema prisional. E só o que eu vejo é gente falando que precisa apertar ainda mais.

FOLHA – Mas "apertar mais" não poderia resolver?
FERRÉZ – Acho que não. Se você pega um cara e mantém ele numa linha dura, o que você espera que ele vai ser quando sair da prisão? Não se trata ser humano dessa forma. O que separa um criminoso do não-criminoso é só o ato criminal. Se eu perco a cabeça e te dou um soco porque não gostei do que você disse, posso ir preso -e pronto: virei criminoso. Ou seja, não tem tanta diferença assim. Mas a sociedade repugna, trata de uma forma que demoniza. Acho que a solução tá longe do que estão propondo.

FOLHA – Se "apertar" não resolve, qual é a solução?
FERRÉZ – Não sei. Não é partindo pra linha dura, mas também não é indo pra linha mole. Sem inteligência, só com polícia truculenta, a gente não vai chegar a um lugar melhor.

FOLHA – Os moradores da periferia gostam do PCC?
FERRÉZ – Não. É um erro muito grande associar a facção criminosa à periferia. Em nenhum momento eu ouvi alguém dizendo que foi bom os policiais serem mortos. Tem um ou outro cara que é do crime que gosta, claro, mas esse não é o pensamento da periferia.

FOLHA – No vídeo que o PCC obrigou a Globo a divulgar, eles falaram em uma guerra entre "nós e vocês". No começo dessa entrevista, você falou numa guerra entre "nós e nós". Por que a diferença?
FERRÉZ – Eu tô vendo pelo lado do povo. Como eu disse, o povo e a polícia estão na mesma parte da população. E o PCC fala em nome deles. Ficou bem claro que eles não falam em nome do povo brasileiro nem do povo da periferia. Precisa saber separar.

FOLHA – E o que você achou desse episódio que envolveu o seqüestro de um repórter?
FERRÉZ – Nesse episódio, todo mundo tá passando a mão na cabeça da Globo, mas a Globo errou. Não deveria ter divulgado o vídeo.

FOLHA – Por quê?
FERRÉZ – Porque abriu um precedente. É f…, porque parece que iam matar o cara. Salvou uma vida, mas colocou São Paulo em xeque. Se tiverem que dar outra mensagem…

FOLHA – Mas isso é algo que você sabe?
FERRÉZ – Não. Mas tô sentindo um clima de preparação pro que vai acontecer. A gente não tá mexendo com gente burra, desinformada, excluída, com coitado. Estamos lidando com gente que sabe o que quer. Isso é uma seqüela que o Estado gerou. Dois meses antes dos atentados, escrevi um texto que falava que a gente ia ter que mudar a bandeira de São Paulo para "SPPCC" se a gente não se organizasse como uma sociedade que respeita o sistema carcerário. E aconteceu. Mas não é difícil prever se você está aqui dentro [na periferia]. Daqui, se você vive o dia-a-dia, você sente o clima com a população e percebe que isso não vai durar muito tempo. Essa é a nova São Paulo. Aprenda a viver nela ou saia fora. As pessoas falam de guerra no Líbano, no Iraque, e nós estamos nessa guerra faz tempo e ninguém tá olhando. Há alguns anos eu falava, não acreditavam, mas eu insisto: se não cuidarem das coisas como elas devem ser cuidadas, se deixarem as pessoas nesse abandono, o futuro é "Mad Max".

Fonte: Folha de S. Paulo