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INSS torna-se alvo do lobby que pede redução de impostos

A maior disputa política do país acontece longe da campanha eleitoral, dos palanques e das propagandas partidárias na TV e no rádio. Esqueça o embate do PT com a dupla PSDB-PFL. A verdadeira batalha trava-se num sentido mais amplo de política, o confronto entre setores da sociedade para fazer prevalecer os interesses de cada um. Essa é a marca do debate sobre reforma da Previdência Social. A mudança ou a manutenção das regras da Previdência mexe com a apropriação de recursos públicos por setores distintos da sociedade. O conflito opõe, de um lado, o sistema financeiro e empresários do chamado setor produtivo, sobretudo industriais. Do outro, trabalhadores e desempregados. No centro, equilibrando-se entre os dois campos e mediando a queda de braço, fica o governo.

Os partidários da reforma defendem-na com o argumento de que, sem controlar os gastos do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), o governo estará condenado a pagar juros altos. Só se rendendo à usura, atrairia capital disposto a rolar uma trilionária dívida pública que tenderia a crescer em função das despesas previdenciárias. Mas é possível notar que a proposta de reforma não mira juros, mas tributos. Dificultar o acesso das pessoas aos benefícios da Previdência aliviaria a necessidade de o governo coletar impostos para tapar o buraco do INSS.

Em 2005, o governo recolheu 1,9% das riquezas produzidas no país durante o ano, para cobrir o prejuízo da Previdência. Em 2006, o nível de compensação deve se repetir. Em dinheiro, são cerca R$ 40 bilhões anuais. Ao pregar regras duras na Previdência, o setor produtivo mostra que não quer mais bancar o déficit. Recusa-se a entregar R$ 40 bilhões ao Estado, ou uma quantia maior, caso o prejuízo suba. Quer o dinheiro em caixa, para lucrar ou investir. Ou, então, que o governo use os recursos para fazer investimentos públicos. Com investimento público, a iniciativa privada poderia ganhar. O Estado puxa as compras de insumos e prestações de serviços, por exemplo.

“O setor produtivo tem dois interesses particulares na reforma: redução da carga tributária e aumento dos investimentos, porque isso faz crescer a demanda. Se o governo conseguir segurar os gastos da Previdência, poderia relaxar a carga tributária”, afirma o economista especializado em política fiscal Francisco Lopreato, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

O problema das motivações identificadas por Lopreato no discurso reformista é que elas ignoram a fratura imposta pelo pagamento de juros ao cofres públicos. Os juros também forçam o governo a arrecadar muito. É com tributos, e fazendo dívida nova, que o governo cede à usura do mercado. “Quem defende a reforma da Previdência não quer questionar nem a dívida pública, nem os juros. Há uma resistência muito forte para que se reduza a taxa de juros, porque ela favorece o sistema bancário”, diz o economista.

Os sinais de que o setor produtivo trocou os juros pelos impostos como alvo de sua ira estão no ar. Uma pesquisa rotineira que a Confederação Nacional da Indústria (CNI) faz com filiados, cujo último resultado foi divulgado no fim de julho, indicou que, para os entrevistados, o principal entrave aos negócios são os impostos. O juro alto aparece em quarto lugar. Por muito tempo, os juros ganharam a medalha de prata.

Nesta quinta-feira (24), outro sinal. A CNI apresentou à imprensa um conjunto de propostas e temas que espera que estejam na agenda do próximo governo. O documento, que será entregue a todos os candidatos a presidente, bota no topo da lista de prioridades a “redução do gasto público”. Só assim a carga tributária poderia cair, acham os industriais. E, por “gasto público”, entenda-se dificultar o acesso aos benefícios do INSS. “Como é que o gasto público pode diminuir, se não fazemos a reforma da Previdência Social? Nós fizemos coisas muito tímidas até agora”, disse o presidente da CNI, Carlos Eduardo Moreira Ferreira.

Acomodação ao juro

A opção de centrar as reclamações nos impostos sugere que, depois de uma década convivendo com juros asfixiantes, o setor produtivo aprendeu a adaptar-se. A provável acomodação tem algumas explicações. Uma delas é que parte do setor produtivo beneficia-se dos juros elevados. O grupo Votorantim, do empresário Antonio Ermírio de Moraes, possui um banco, de nome igual. O grupo Vicunha, outro gigante, também (Fibra).

Além de se favorecer com juro escorchante, o setor produtivo tem condições de tocar a vida sem depender do caro crédito bancário. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) tem R$ 60 bilhões por ano para emprestar, e grande parte a uma taxa de juros diferenciada, própria para investimentos de longo prazo, chamada TJLP. Hoje, a TJLP é metade do juro fixado pelo Banco Central. A taxa do BC influencia todos os empréstimos feito por bancos privados. No fim de julho, o juro médio cobrado pelos bancos privados em financiamentos às empresas era o dobro da taxa do BC e quase quatro vezes maior que a TJLP.

As empresas privadas também podem recorrer à bolsa de valores como fonte de crédito mais barato – lançar ações ou vender papéis do tipo debênture custa menos do que pegar empréstimo bancário. Ou fazer acertos com seus fornecedores, em transações com juros menores que os das instituições financeiras.

Por evitar o sistema financeiro tradicional, as empresas brasileiras estão entre as que têm menor capacidade de alavancagem dos negócios. Pouco se endividam financeiramente para tocar projetos ou empreendimentos novos, como disse recentemente o ministro da Fazenda, Guido Mantega.

Mas a fuga do sistema financeiro é uma realidade basicamente para empresas de grande porte. As pequenas seguem reféns dos bancos. Têm dificuldade de se virar na bolsa ou fazer acordo com fornecedores. Ao analisar o balanço das três maiores instituições financeiras privadas do país (Bradesco, Itaú e Unibanco), o BC notou que, nos últimos tempos, vem aumentando a participação dos empréstimos para pequenas empresas. E, para elas, os juros são maiores. “As pequenas empresas têm menos opção de crédito fora do sistema financeiro”, afirma Luiz Malan, chefe-adjunto de Departamento Econômico do BC.

Como consegue escapar do sistema financeiro, e também lucrar com juros abusivos, o setor produtivo aliou-se a ao próprio sistema financeiro para pregar redução de gastos federais e, portanto, da carga tributária. Inclusive porque é mais fácil fugir dos bancos do que do fisco, a menos que se parta para a sonegação. “O capital financeiro exige mais, via juros, do capital produtivo. E esse, que não é bobo e quer lucrar, joga o tacão no trabalhador. Por isso, estão juntos pedindo a reforma”, diz a economista Rosa Maria Marques, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), estudiosa de políticas sociais.

Resistência dos trabalhadores

Os trabalhadores e desempregados resistem a mudanças na Previdência porque ela é um instrumento de política social e de distribuição de renda. Os gastos do INSS neste ano beneficiaram 75 milhões de pessoas, direta ou indiretamente. O equivalente a 7,5% da renda nacional favoreceu 40% do brasileiros. Houve distribuição de renda porque as contribuições patronais e dos trabalhadores para o INSS foram insuficientes para bancar as despesas. Ao compensar a diferença, o governo tirou dinheiro de outros setores da sociedade que podiam pagar, via tributação.

Além disso, existem direitos adquiridos por contribuintes do INSS que podem ser atingidos. Pessoas que se associaram à Previdência com uma regra que lhes permitiria se aposentar num determinado prazo. Deve-se lembrar ainda que a Previdência paga não só aposentadorias, mas seguro-desemprego, auxílio-doença, auxílio-maternidade. Ou seja, ampara que tem dificuldade de arrumar emprego. E, com juros e impostos altos, arranjar emprego fica mais complicado, pois eles inibem o crescimento econômico do país.

Do ponto de vista dos trabalhadores, desempregados e de pensadores mais ligados a esse campo, a carga tributária no Brasil é pesada não porque o Estado seja inchado e gastador, mas porque os juros pagos ao sistema financeiro são elevados e sangram as contas públicas.

A carga de impostos cresceu de 2% das riquezas brasileiras para 40%, entre a adoção do Plano Real e 2005. É certo que o aumento decorreu do crescimento de gastos, porque a arrecadação tem por finalidade pagar despesas. Mas “gastos” com juros também são gastos. A dívida pública corrigida pelos juros comia um terço das riquezas produzidas no país, hoje consome metade. No período, o déficit do INSS avançou de 0,06% para 1,94% da renda nacional.

O déficit público federal – a diferença entre arrecadação e gastos – é um dos grandes argumentos usados pelo sistema financeiro e por economistas identificados com o mercado para justificar os juros extorsivos. Mas, hoje, o déficit pode ser inteiramente atribuído aos juros. Quando se calcula o “lucro” ou o “prejuízo” do governo sem os juros, observa-se um lucro em torno de 4% das riquezas produzidas no país. Mas, quando o pagamento de juros entra na conta, o lucro vira prejuízo de 3%. Esse prejuízo é financiado com dívida nova que o governo faz, em troca dos mesmos juros altos. É uma ciranda.

“O déficit público existe pela variação da dívida. Não há um só centavo da Previdência financiado por dívida”, diz Guilherme Delgado, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), autor de um estudo sobre a Previdência no Brasil. “O capital financeiro fala que o Estado gasta muito, que os gastos estão explodindo, mas não fala em juros”, afirma Floriano José Martins, da Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Previdência Social (Anfip).

Os interesses financeiros

Ao capital financeiro – bancos, fundos de investimentos, especuladores nacionais e internacionais –, interessa a tese de descontrole de gastos porque ajuda a justificar os juros altos que o governo aceita pagar. Num quadro desses, o sistema financeiro pode manter a apropriação de quase 8% das riquezas brasileiras. A apropriação que se dá por intermédio do governo, via pagamento de juros.

Diante disso, fica fácil entender o significado simbólico de uma fato quase banal. O presidente da Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNIF), Gabriel Jorge Ferreira, é membro titular do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, órgão consultivo da Presidência da República que reúne representantes da sociedade para discutir temas diversos. O suplente dele é o economista Raul Velloso, conhecido como especialista em contas públicas. Velloso costuma produzir análises e dar entrevistas que sempre apontam para a necessidade de o governo cortar gastos.

A disputa entre os setores da sociedade deverá se acentuar no próximo governo, talvez já em 2007. O futuro governo será obrigado a debater tributação, pois o prazo de validade da CPMF acabará em dezembro do ano que vem. Para alguns parlamentares, é provável que a reforma da Previdência pegue carona. Além disso, caso haja alguma proposta de cortes de direitos dos trabalhadores, governo e Congresso teriam três anos para que os eleitores esqueçam disso até a eleição seguinte. Foi o que ocorreu no atual governo, que mexeu na previdência do setor público em 2003.

A série sobre Previdência continua nesta segunda-feira (28), com reportagem sobre o interesse do sistema financeiro na privatização da Previdência.

Fonte: André Barrocal/Agência Carta Maior