Redução das fraudes na Previdência reduziria pressão por ajuste drástico
O prejuízo da Previdência Social, existente porque o governo faz contas afrontando dispositivos da Constituição, pode ser abatido com crescimento econômico, segundo especialistas ouvidos por Carta Maior durante a série de reportagens sobre o tema. Mas também existem iniciativas que aliviariam ou ajudariam a sanear o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) independentemente dos rumos da política econômica. O reforço da arrecadação e o controle de fraudes e desperdícios podem fazer o déficit cair. E, com rombo menor, diminuiria, em tese, a dureza do cortes de direitos dos trabalhadores, na hipótese de uma reforma da Previdência.
Na área da arrecadação, o Ministério da Previdência entendeu-se com a equipe econômica para que a Fazenda siga uma antiga ordem constitucional e repasse a parcela da arrecadação da CPMF que cabe ao INSS (26% do total). O repasse começará no ano que vem. “Temos de esgotar as fontes de financiamento da Previdência, antes de discutir qualquer outro tipo de ajuste”, afirma o secretário de Políticas de Previdência Social, Helmut Schwarzer.
Também na área de arrecadação, a Secretaria da Receita Previdenciária está elaborando um estudo para finalizar até outubro. O trabalho tem dois focos, segundo o assessor especial de estudos tributários e normatização, Silas Santiago. Revisar as isenções concedidas a contribuintes do INSS e achar formas de aumentar o número de contribuintes. O trabalho não será implementado na prática, mas usado para auxiliar decisões do governo, inclusive sobre uma eventual reforma.
Ao privilegiar a arrecadação, o trabalho mostra que uma eventual reforma poderia buscar o equilíbrio do INSS reforçando o cofre, não só cortando direitos dos aposentados. Essa perspectiva agrada defensores do INSS. “As reformas da Previdência tratam de benefícios mas nunca da arrecadação, não atacam o alto poder de evasão, nem as renúncias”, diz a economista Eli Iôla Gurgal Andrade, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutorada com tese sobre a Previdência.
Fazendeiros, filantrópicas e PJs
As isenções que o governo oferece a diversos segmentos vão tirar R$ 12,6 bilhões do caixa do INSS este ano. O benefício a entidades filantrópicas, fazendeiros exportadores e pequenas empresas sacrificará 10% da arrecadação prevista. A Secretaria de Receita Previdenciária acha que a renúncia está muito elevada e quer mexer em vespeiros. Santiago defende taxar fazendeiros exportadores e funcionários contratados como pessoa jurídica e diminuir ou eliminar a renúncia dada a filantrópicas e pequenas empresas.
As regras previdenciárias na agricultura são diferentes das válidas para empresas urbanas. Os fazendeiros pagam 2,6% do faturamento ao INSS. O problema é que grande parte das vendas dos ruralistas resulta de exportações, e elas são imunes a tributações. Por conta disso, o INSS perderá R$ 2,3 bilhões este ano.
A imunidade nasceu em 2002, depois de o Congresso ter mudado a Constituição a pedido do governo. A alteração criou a taxa dos combustíveis (Cide), ao mesmo tempo em que protegeu exportações da cobrança de contribuições. Segundo Santiago, a equipe econômica da época não se preocupou em preservar a Previdência. “Precisamos enfiar uma proposta no Congresso para mudar isso assim que houver espaço”, diz.
A idéia, se levada adiante, deverá causar forte reação da bancada ruralista. Mas alguns especialistas acham que o desafio deve ser enfrentado. “Não é correto é que o empregador rural não tenha mecanismos de contribuição. Deveria haver uma CPI para explicar por que a agricultura, mesmo tendo se tornado uma agroindústria, não consegue contribuir”, afirma Eli Iôla.
Taxar trabalhadores “pessoas jurídicas” – aqueles que emitem nota fiscal, em vez de receber um carimbo na carteira profissional – também é idéia polêmica. Com esse tipo de contratação, difundido com o neoliberalismo dos anos 90, as empresas fogem de direitos devidos aos trabalhadores, como FGTS e contribuição ao INSS. Para contornar a artimanha patronal, Santiago defende apertar o funcionário PJ, mordendo um pedaço do faturamento dele. “Precisamos alcançar os não-tributados de algum jeito”, diz.
Santiago também apóia repensar a tributação especial das pequenas empresas e as renúncias dadas às filantrópicas. As empresas com vendas até R$ 2,4 milhões por ano podem a aderir a um regime especial de tributação, batizado de Simples. Nele, entregam uma parte do faturamento à Receita Federal, e o fisco considera quitados todos os tributos, inclusive contribuições ao INSS. Por causa deste regime, o fisco abre mão de R$ 5,8 bilhões este ano.
Já o benefício para as filantrópicas vai retirar R$ 4,1 bilhões do INSS este ano. Para Santiago, essa renúncia é injusta, pois gera desigualdade na concorrência no mercado. Uma instituição de ensino ou de saúde que não paga INSS pode cobrar menos do que os concorrentes.
Sonegação e calote
Além das propostas em estudo no governo, especialistas apontam outras formas de reforçar o caixa da Previdência. As duas principais são antigas: enfatizar o combate à sonegação e ao calote aplicado por empresas e órgãos públicos no INSS.
A Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Previdência Social (Anfip) estima que a sonegação roube do INSS 30% da arrecadação anual, no mínimo. “Sem sonegação, seriam eliminadas as necessidades de financiamento do INSS. Haveria superávits entre 1997 e 2003”, diz o economista Milko Matijascic, do Centro Universitário Salesiano de São Paulo. Segundo ele, é estranho que, numa discussão contábil sobre o INSS, o tema “sonegação” seja abordado timidamente.
No que diz respeito ao calote no INSS, a dívida estava em R$ 114 bilhões, no fim do primeiro semestre. É quase um ano de arrecadação prevista para este ano. E suficiente para cobrir 70% do déficit acumulado de 1995 a 2005. “Um mínimo de crescimento econômico, geração de emprego formal e recuperação de créditos são mais do que suficientes para resolver o problema da Previdência”, afirma Guilherme Delgado, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), autor de um estudo sobre previdência.
A recuperação de créditos cresce mais do que a arrecadação normal do INSS, mas continua num patamar em torno de 6% da receita total. Aliás, é provável que parte da dívida seja renegociada pelos devedores, diminuindo as chances de recuperação dos créditos no curto prazo. Os devedores têm até 15 de setembro para aderir a mais um parcelamento de débitos criado pelo governo federal, o Refis 3. As dívidas serão parceladas em até 130 meses.
Fraudes e controle de gastos
Além do combate à sonegação e aos calotes, a Previdência poderia equilibrar o caixa coibindo fraudes no próprio quintal. Uma das iniciativas mais importantes, segundo a associação dos fiscais, seria trocar o sistema de informática usado no processamento das despesas da Previdência. A empresa pública encarregada da tarefa chama-se Dataprev. Por mais de 30 anos, dependeu exclusivamente do sistema da multinacional norte-americana Unysis. O governo tenta se livrar da dependência desde 2003, mas enfrenta dificuldades. Segundo a Anfip, o sistema é atrasado e cheio de brechas para desvios. “O sistema de informática não funciona. O patrimônio da previdência é roubado”, diz Marcelo Oliveira, vice-presidente de Assuntos de Seguridade Social da Anfip.
Ainda na área de controle de gastos, o economista Matijascic defende proibir o acúmulo de aposentadorias por parte de beneficiados pelo INSS. Só poderia receber da Previdência quem não tivesse emprego. Ele radiografou os gastos previdenciários e constatou: “Não são os mais pobres que se beneficiam da acumulação de benefícios e rendimentos do trabalho”. “Se a acumulação de aposentadorias e pensões pode se justificar numa família com baixos rendimentos e com filhos menores, o mesmo não vale para quem tem rendimento mais elevado ou não tem filhos”, diz.
Fonte: Agência Carta Maior