A “ética” do cinismo, artigo de Marco Aurélio Weissheimer
O juiz Rodrigo César Muller Valente, da 22ª Vara Criminal de São Paulo, condenou Emir Sader por injúria “à pena de um ano de detenção, em regime inicial aberto, substituída nos termos do artigo 44 do Código Penal por pena restritiva de direitos, consistente em prestação de serviços à comunidade ou entidade pública, pelo mesmo prazo de um ano, em jornadas semanais não inferiores a oito horas, a ser individualizada em posterior fase de execução”.
O crime cometido por Emir, segundo o juiz, foi ter chamado o senador Jorge Bornhausen (PFL-SC) de racista, em um artigo que comentava a declaração do dirigente do PFL que afirmou seu desejo de “ver-se livre desta raça por 30 anos”, referindo-se ao PT e à esquerda em geral. A sentença do juiz Valente também determina o afastamento de Emir da condição de professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Na avaliação do magistrado, Emir “valeu-se da condição de professor de universidade pública para praticar o crime”.
Contextualizando o que foi dito por Emir Sader não custa lembrar: em 2005, no auge da crise política, o senador Bornhausen não conteve a euforia diante dos episódios que atingiam o PT e expressou seu desejo de se “livrar desta raça por 30 anos”. O feitiço virou contra o aprendiz de feiticeiro. Quem resolveu se “livrar desta raça” foi o povo brasileiro que varreu o PFL dos governos estaduais.
O partido do sr. Bornhausen venceu apenas no Distrito Federal com o ex-tucano José Roberto Arruda. Em 1998, o PFL tinha seis governadores eleitos. Em 2002, caiu para quatro. Agora, ficou só com o Distrito Federal. Seus maiores fracassos este ano ocorreram na Bahia (com a derrota no primeiro turno do governador Paulo Souto para o petista Jacques Wagner), em Pernambuco (com a derrota de Mendonça Filho para Eduardo Campos, do PSB) e no Maranhão (com a derrota de Roseana Sarney). O desejo de Bornhausen virou maldição e ele viu seu partido minguar em todo o país. Agora, ele tenta obter uma vitória na Justiça contra Emir Sader. Deveria aproveitar e processar o povo brasileiro também, que resolveu escantear a "raça" pefelista.
O grito dos “independentes”
Enquanto isso, a Veja, a Folha de São Paulo e a Rede Globo, entre outros, protestam contra a ameaça à liberdade de imprensa no Brasil. E os escribas da direita de plantão seguem acusando e insultando lideranças da esquerda, dia e noite, sem que nada lhes aconteça. Lula já foi chamado inúmeras vezes de “bêbado”, “mentiroso”, “ladrão”, “corrupto”, apenas para citar os adjetivos mais leves. Qualquer menção a uma reação jurídica aos que emitem tais opiniões é imediatamente taxada de “ameaça à liberdade de imprensa”.
O editorial da Folha de São Paulo desta quarta-feira (1°) afirma: “Confirma-se o ceticismo a respeito da brandura que marcou a atitude da campanha de Lula para com a imprensa no segundo turno. Um verniz de humildade substituíra a arrogância, o desapego à prestação de contas e a truculência do petismo governista enquanto interessava ao cálculo eleitoral. Fechadas as urnas, setores da militância do PT puseram em marcha uma campanha que tenta intimidar meios de comunicação independentes”. Meios de comunicação independentes? Independentes do que e de quem exatamente? Nunca é demais lembrar alguns números sobre a concentração da mídia no Brasil.
O poder midiático no Brasil se concentra nas mãos de algumas poucas famílias e empresas. O maior grupo de comunicação do país, a Rede Globo, possui 227 veículos, entre próprios e afiliados. É o único dos grandes conglomerados que possui todos os tipos de mídia, a maioria dos principais grupos regionais e a única presente em todos os Estados brasileiros. A indústria televisiva domina o mercado da publicidade, detendo cerca de 56,1% de suas verbas. Em segundo lugar vêm os jornais, com 21,5%, as revistas com 10,6% e as rádios com 4,9%. Todos os outros veículos somados chegam a 6,9% do mercado publicitário. Sozinha, a Rede Globo detém mais da metade do mercado televisivo brasileiro.
Além do imenso poderio da Globo, outros seis grandes grupos regionais se destacam. A família Sirotsky comanda a Rede Brasil Sul de Comunicações, controlando o mercado midiático no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. A família Jereissati está presente no Ceará e em Alagoas. A família Daou tem grande influência no Acre, Amapá, Rondônia e Roraima. A mídia da Bahia pertence à família Magalhães. No Mato Grosso e no Mato Grosso do Sul, os negócios são controlados pela família Zahran. E, por fim, a família Câmara tem grande influência em Goiás, Distrito Federal e Tocantins. Segundo dados da Associação Nacional de Jornais, relativos ao período 2001-2003, apenas seis grupos empresariais concentram a propriedade de mais da metade da circulação diária de notícias impressas no país. Sozinhos, estes veículos respondem por cerca de 55,46% de toda produção diária dos jornais impressos.
Qualquer menção à necessidade de democratizar esse cenário é rebatida fortemente por artigos e editoriais destes grupos hegemônicos. Artigos como o publicado pelo colunista Merval Pereira nesta quarta-feira no jornal O Globo, que denuncia um “surto autoritário” por parte do governo Lula e do PT. “Que governo é esse que mal saído das urnas com uma consagradora vitória eleitoral precisa dar uma demostração de força contra a liberdade de imprensa?”, indaga o colunista. Logo em seguida, critica duramente a proposta levantada por Ciro Gomes no sentido de incentivar os meios de comunicação alternativos. “Essa solução oficial para incentivar uma mídia independente com dinheiro público, além de risível pela própria incoerência, tem precedentes históricos ruins: foi na CPI do jornal Última Hora, criado a partir de empréstimos generosos do Banco do Brasil para defender o governo de Getúlio Vargas, que surgiu a expressão mar de lama”, escreve Merval.
Para o colunista, o dinheiro público deve continuar indo apenas para o fortalecimento dos monopólios midiáticos já existentes. Ele esquece de mencionar os negócios generosos firmados entre a Rede Globo e a ditadura militar que ajudaram a transformar o grupo no que é hoje. Aí, para ele, não houve nenhum “mar de lama”. Talvez de sangue, não custa lembrar.
Uma das coisas mais constrangedoras, para dizer o mínimo, no jornalismo atual é ver jornalistas comprando integralmente a pauta das empresas onde trabalham como se ela expressasse um valor universal. Assim, vemos jornalistas indignados quando a linha editorial dos veículos onde trabalham é criticada, como se a crítica fosse dirigida a eles pessoalmente. A indigência cultural e política que grassa em boa parte das redações brasileiras é de chorar num cantinho. Mais triste ainda é ver quem está entrando no “mercado de trabalho” louco para arrumar um emprego na Globo, na Folha de São Paulo, na Veja, na RBS, etc.
O deslumbramento com a possibilidade do holofote só é inferior à vontade de subserviência e submissão a um trabalho acrítico e, muitas vezes, medíocre. Aqueles poucos, então, que conseguem um holofote maior transformam-se em verdadeiros relações públicas das empresas onde trabalham. E há aqueles, que para isso, não hesitam em fazer qualquer serviço que o patrão solicitar. Esse quadro só parece piorar, com o aumento da competição e a diminuição de espaços de trabalho.
A “ética” do cinismo
Não se lerá em nenhum veículo da chamada grande imprensa, por exemplo, a denúncia feita pelo desenhista gaúcho Santiago, que teve um trabalho seu publicado sem autorização pela revista Veja. Pior ainda, publicou mesmo tendo sido desautorizado a fazê-lo. É o próprio Santiago quem relata: “Dois dias antes da eleição (segundo turno), recebi um telefonema de um funcionário da redação da revista Veja pedindo autorização para usar este desenho. Respondi que não autorizava pois não concordava com a linha editorial da revista. Repeti que não gostaria de ver trabalho meu nesse momento histórico nas páginas dessa publicação. Pois no sábado fui à banca, abri a revista e lá estava a minha charge publicada na página de apresentação da edição. Mais do que usar um trabalho sem autorização, Veja usou um trabalho que havia sido verbalmente desautorizado pelo autor. Um belo exemplo da arrogância da grande imprensa”.
A julgar pelos argumentos utilizados por Veja, por Merval Pereira e pelo editorial da Folha de São Paulo, Santiago também estaria ameaçando a “liberdade de imprensa” ao protestar contra a atitude autoritária e ilegal da revista.
Em um artigo publicado nesta quarta no jornal Valor Econômico, intitulado “As suaves truculências da liberdade”, Luiz Gonzaga Belluzzo reproduz uma reflexão do pensador francês Paul Virilio sobre o papel da mídia no mundo contemporâneo. Uma reflexão que põe o dedo na ferida e indica o tamanho do problema a ser enfrentado:
“O filósofo Paul Virilio chegou a uma conclusão drástica: a mídia contemporânea é o único poder que tem a prerrogativa de editar suas próprias leis, ao mesmo tempo em que sustenta a pretensão de não se submeter a nenhuma outra. A justificativa para tal procedimento trafega entre o cinismo e a treva: uma vez afetada a liberdade de imprensa, todas as liberdades estarão em perigo. Cinismo, diz ele, porque esta reivindicação agressiva trata de negar o óbvio: os meios de divulgação e de formação de opinião vêm se concentrando, de forma brutal, no mundo inteiro, nas mãos de grandes empresas”.
Marco Aurélio Weissheimer é jornalista da Agência Carta Maior (correio eletrônico: gamarra@hotmail.com)