Brasil não avança no combate a violações de direitos humanos
Em seu último relatório global, lançado internacionalmente na última semana, a Human Rights Watch ressalta a importância de avanços ocorridos recentemente na América Latina no que se refere à defesa e promoção dos direitos humanos. Segundo a organização, uma das mais importantes da área em todo o mundo, praticamente todos os países do continente ratificaram o estatuto de Roma, que institui o Tribunal Penal Internacional, e muitos têm resistido à intensa pressão norte-americana – incluindo ameaças de corte de ajuda financeira dos Estados Unidos – para assinarem acordo bilaterais que excluem os cidadãos americanos da jurisdição do Tribunal. Mais recentemente ainda, países como a Argentina, o Chile e o México trabalharam fortemente pela criação do novo Conselho de Direitos Humanos da ONU, tanto que os mexicanos acabaram sendo escolhidos para ocuparem a primeira presidência do órgão.
O Brasil, no entanto, apesar do reconhecimento dos esforços do governo federal, segue sendo palco de significativas violações de direitos humanos e um país onde tais crimes raramente são punidos. Um dos principais problemas destacados pela Human Rights Watch é a violência policial, caracterizada pelo uso excessivo da força, por execuções extrajudiciais, pela prática da tortura e outras formas de maus-tratos. De acordo com dados oficiais citados no relatório, a política de São Paulo matou 328 pessoas nos primeiros seis meses de 2006, um aumento de 84% em relação ao mesmo período de 2005. A maior parte das mortes ocorreu em maio, diante da reação agressiva da polícia aos ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital).
“Em uma investigação preliminar, um comitê independente revelou fortes evidências de que várias das mortes documentadas foram execuções extrajudiciais”, cita o estudo, se referindo aos dossiês apresentados pela comissão independente formada por organizações da sociedade civil e pelo ministério público (leia matéria "Polícia aponta para execução em 70% dos casos").
A violência policial no Rio de Janeiro também foi destaque na pesquisa. No Rio, os policiais mataram 520 pessoas no primeiro semestre de 2006, segundo dados classificados oficialmente como “resistência seguida de morte”. Do outro lado, dezesseis policiais foram mortos no mesmo período.
Em relação à tortura, o Brasil reconheceu a competência do Comitê da ONU de receber e avaliar denúncias feitas diretamente por cidadãos, de acordo com o Artigo 22 da Convenção da ONU contra Tortura (leia matéria "Brasil pode ter Observatório da Tortura a partir de 2007"). Em junho do ano passado, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República também criou o Comitê Nacional para Prevenção e Controle da Tortura, composto por autoridades públicas e representantes da sociedade civil, e encarregado de propor e monitorar mecanismos de combate à prática, assim como realizar visitas de inspeção a locais de detenção. A tortura, no entanto, na avaliação da Human Rights Watch, permanece grande no Brasil. “Relatórios apontam que policiais e agentes penitenciários torturam pessoas sob sua custódia como forma de punição, intimidação e extorsão. A polícia também usa a tortura como meio de obter informações ou confissões forçadas de pessoas suspeitas de terem cometido crimes”, afirma.
Pouco também se avançou em relação às condições das unidades prisionais brasileiras, que em junho de 2006 mantinham 371.482 detentos, excedendo a capacidade do sistema em mais de 150 mil vagas. O caso mais grave do período foi o que aconteceu na penitenciária de Araraquara, no interior de São Paulo, onde, após uma rebelião que destruiu a unidade, 1.500 pessoas ficaram alojadas por meses em condições subumanas (leia matérias "Política do encarceramento faliu sistema prisional em São Paulo" e "São Paulo não cumpre medidas da OEA para Araraquara"). Em Mirandópolis, também no interior do estado, pela mesma razão, 1.200 detentos foram mantidos por dois meses em uma área planejada para abrigar não mais que 450 (leia matéria "Penitenciária de Mirandópolis funciona em condições subumanas").
No Espírito Santo, dois presos foram mortos, um deles decapitado, durante uma rebelião na penitenciária de Viana, instalação de segurança máxima localizada no município de Vila Velha. Em Rondônia, mais de 200 pessoas foram feitas reféns por 24 horas na prisão de Urso Branco durante motins em junho e julho de 2006. Embora a Corte Interamericana de Direitos Humanos tenha reiterado ao Brasil que adote medidas para garantir a segurança dos detentos em Urso Branco em quatro ocasiões desde 2002, o Brasil falhou em fazê-lo. Segundo a organização internacional, diversas rebeliões por todo o país poderiam ser evitadas se o país melhorasse as condições de suas prisões.
O sistema de detenção juvenil também foi criticado, com suas unidades apontadas como locais de condições desumanas e de violência sistemática (leia matérias "Organizações reivindicam desmonte imediato da Febem" e "Tortura na Febem-SP continua até em unidades pequenas"). Enquanto isso, defensores dos direitos das crianças e adolescentes que se manifestam contra o sistema são perseguidos judicialmente. É o caso de Conceição Paganele, que denunciou a tortura na Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor) em São Paulo e está sendo investigada por incitar rebeliões e facilitar a fuga de jovens internos.
No meio rural, além das mortes decorrentes de conflitos agrários, estimativas indicam que entre 25 e 40 mil pessoas ainda estão submetidas à situação de trabalho escravo no Brasil. A Organização Internacional do Trabalho relatou em 2006 que a impunidade é um dos maiores obstáculos para erradicar essa prática do país. Um projeto de lei propondo a expropriação de terra pelo uso do trabalho escravo está parado no Congresso desde 2001.
Impunidade
“Violações de direitos humanos no Brasil raramente geram processos judiciais”, disse a Human Rights Watch. Em uma tentativa de remediar este problema, o governo brasileiro aprovou, em 2004, uma emenda constitucional que torna as violações de direitos humanos crimes federais. A emenda permite que certas violações sejam transferidas da competência da justiça estadual para a jurisdição federal. Apesar disso, até o momento, nenhuma transferência foi feita.
O relatório internacional destaca que, em 2006, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo anulou a condenação do Coronel da Polícia Militar Ubiratan Guimarães, responsável pela operação que resultou na morte de 111 presos no centro de detenção do Carandiru, em 1992. Guimarães havia sido condenado em 2001 a 632 anos de prisão por seu papel na operação. Mas o Tribunal de Justiça de São Paulo anulou a decisão com base no argumento de que o coronel havia atuado de acordo com o estrito cumprimento do dever legal ao chefiar a invasão do centro de detenção para se conter uma rebelião (leia matéria "Tribunal de Justiça absolve comandante do massacre do Carandiru"). Até o momento, nenhum outro policial foi julgado em relação a este caso.
Em um passo positivo, por outro lado, em agosto de 2006, um júri no Rio de Janeiro condenou o policial militar Carlos Jorge Carvalho a 543 anos de prisão por seu envolvimento no massacre da Baixada Fluminense, em que 29 pessoas foram executadas em 31 de março de 2005. Quatro outros policiais processados pelo massacre ainda aguardam julgamento.
Em outra importante decisão, em outubro do ano passado, 14 oficiais e agentes penitenciários foram condenados por torturar 35 adolescentes no complexo Raposo Tavares da Febem em São Paulo. Dois oficiais de alto escalão foram condenados a 87 anos de prisão, a maior pena por tortura de que se tem notícia no país.
Fonte: Da Redação – Agência Carta Maior