Mulheres acionarão Justiça contra estereótipos veiculados pela mídia
Pouca coisa foi diferente dos anos anteriores. Se neste 8 de Março a grande imprensa brasileira não ignorou solenemente, como sempre faz, as mobilizações do movimento feminista no Dia Internacional da Mulher, desta vez a passeata por igualdade, autonomia e liberdade das mulheres realizada na Avenida Paulista na última quinta-feira foi abafada pelos conflitos da polícia com um grupo de manifestantes anti-Bush. Planejado para acontecer logo após o encerramento da marcha do 8 de Março, o ato contra a presença do presidente americano no Brasil acabou se somando à passeata feminista – e, devido a ação de bem poucos de um universo de cerca de 20 mil pessoas, diminuindo o brilho da ação das mulheres.
Assim a Folha de S. Paulo registrou o fato, no dia 9 de março: “Uma passeata na avenida Paulista (centro de SP), em protesto contra a visita do presidente George W. Bush terminou em um confronto entre manifestantes e a Polícia Militar com pelo menos 23 feridos por fragmentos de bombas de efeito moral, balas de borracha, pedradas e pauladas. Segundo a polícia, 18 dos 23 feridos eram policiais – a maioria deles atingidos por pedradas. […] Foi convocado por ONGs, entidades sindicais e partidos de esquerda.” Nenhuma palavra sobre o 8 de Março.
Em outra reportagem, no mesmo dia, ainda sobre as manifestações contra Bush: “O protesto foi convocado pela Marcha das Mulheres, em virtude do Dia Internacional da Mulher, comemorado ontem, e teve adesão do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), do PSTU, da Conlutas (entidade que reúne sindicatos diversos), do PC do B, e de várias organizações não-governamentais”. Historicamente, o 8 de Março é construído por dezenas de organizações feministas, não somente a Marcha Mundial das Mulheres.
A Folha achou curioso o fato do protesto ter várias bandeiras: “Manifestantes criticaram Bush, açúcar e até a falta de delegacias para mulher”, dizia o título de um dos artigos. “Convocada para ser um ato em comemoração ao dia da mulher, a passeata que interditou ontem parte da avenida Paulista e acabou em conflito com a PM reuniu partidos de esquerda e entidades não-governamentais. Eles protestaram contra temas tão diversos quanto a visita do presidente Bush ao Brasil, a cana-de-açúcar, a falta de delegacias 24 horas para mulheres e a guerra entre Israel e Líbano, ocorrida em 2006”.
Em O Estado de S.Paulo, a Marcha Mundial das Mulheres foi responsabilizada pelo conflito com a polícia. “O que começou como uma manifestação pacífica para combinar comemorações do Dia Internacional da Mulher e protestos contra o presidente dos EUA, George W. Bush, acabou em confronto na Avenida Paulista, com pelo menos 17 feridos. Os milhares de participantes da Marcha Mundial das Mulheres – guiada pelo grito “fora, Bush” – entraram em choque com os pouco mais de 100 policiais que cuidavam da segurança no local”, disse o jornal.
No rádio e na TV não foi diferente, as bandeiras e reivindicações das mulheres, que levaram milhares à Avenida Paulista na última quinta, não mereceram a atenção da imprensa. Na avaliação das organizações da área, a invisibilidade e as distorções da imagem da mulher na mídia não se restringem, no entanto, ao jornalismo. São parte de uma concepção de comunicação que não respeita a pluralidade e diversidade da sociedade brasileira e que, por isso, acaba reforçando estereótipos e incentivando o preconceito.
Para contrabalançar este cenário histórico de discriminação contra a mulher na mídia, o movimento feminista entrará em breve na Justiça com uma Ação Civil Pública solicitando um direito de resposta aos meios de comunicação. A idéia é veicular, durante uma semana, em um horário específico e em todos os canais, um programa que retrate a mulher de maneira diferente.
“Não devemos focar o direito de reposta a um programa ou emissora específica. Em todos os canais temos o mesmo problema, de sub-representação ou de veiculação de uma imagem estereotipada da mulher. Ou somos valorizadas da maneira inadequada, quando se quer vender algo através da nossa imagem – como acontece nas propagandas de cerveja – ou somos caricaturadas. Falta um confronto maior com a realidade, que é múltipla”, explica Rachel Moreno, da Campanha Pela Ética na TV, uma das articulações envolvidas na ação.
Em um manifesto lançado este mês para a coleta de assinaturas a serem enviadas ao Ministério Público Federal, as feministas afirmam que não se reconhecem nas produções da programação televisiva. “Pior do que isso é, na maior parte do tempo, nos sentirmos vilependiadas, ridicularizadas, usadas para promover valores, padrões e produtos os mais variados, em detrimento de nossa realidade e aspirações”, dizem no texto.
“A relativa invisibilidade das mulheres trabalhadoras, intelectuais, especialistas, profissionais liberais e outras, a falta de espaço para a discussão de nossas reivindicações e ideais, bem como de nossas conquistas e das mudanças que conseguimos introduzir no mundo, perpetua a reprodução dos estereótipos limitantes que influem na formação de uma subjetividade empobrecida e resultam no rebaixamento da auto-estima das mulheres e na busca de sua afirmação através da perseguição dos modelos, valores e produtos veiculados”, continua o documento.
Dossiê de violações
Um dossiê com casos de violação dos direitos das mulheres pela mídia, que será entregue junto ao pedido de direito de resposta, também está sendo elaborado. Ele trará o resultado de pesquisas nacionais e internacionais sobre a imagem da mulher na TV e o impacto que este modelo de valores têm provocado nas brasileiras.
Um dos estudos apresentados será o relatório de 2005 do Projeto Global de Monitoramento da Midia, desenvolvido internacionalmente pela WACC (World Association for Christian Communication). A pesquisa mostrou que, mesmo constituindo 52% da população mundial, as mulheres aparecem em apenas 21% das notícias. Ou seja, para cada mulher que aparece no noticiário, cinco homens são retratados. No rádio este percentual é ainda menor: 17%. Quando é feita uma análise qualitativa da presença das mulheres como fonte de reportagens, a opinião feminina é retratada em somente 14% dos artigos sobre política e em 20% sobre economia, os dois temas que dominam a agenda dos países. A voz feminina também é preterida quando se trata de ouvir a opinião de especialistas: 83% deles são homens.
O estudo mostrou também que há duas vezes mais reportagens que reforçam estereótipos de gênero do que matérias que os desafiam. Ao mesmo tempo, a própria desigualdade de gênero não é considerada digna de ser notícia: 96% das matérias do mundo inteiro não ressaltam este tema, sendo que as demais estão concentradas em áreas como direitos humanos, relações familiares ou ativismo feminista – assuntos que geralmente recebem pouco destaque dentro do conjunto de artigos de um veículo, em matérias predominantemente escritas por jornalistas mulheres.
“É preciso que a sociedade tenha acesso a uma visão diferente da que a mídia ora nos impõe. Queremos poder efetivamente usufruir de nosso direito à comunicação e mostrar a vida e a realidade das mulheres como nós a percebemos e vivemos. Queremos poder mostrar as mulheres em seus mais diversos contextos, na lida do cotidiano, em seus sonhos, em suas lutas, em suas conquistas, em suas contradições e problemas. Por isso, exigimos o nosso direito de resposta. Queremos oferecer uma alternativa a esta imagem plasmada que as emissoras de TV veiculam como sendo a única e verdadeira”, conclui o manifesto.
Até o momento, mais de 100 entidades assinaram o documento. O objetivo é formalizar o pedido de direito de resposta junto à Justiça até o final de março. Clique aqui para saber mais sobre o manifesto. Os interessados em endossar o documento podem assinar a petição on-line ou enviar um e-mail para moreno@postbox.com.br, com o nome, RG e entidade (se houver).
Fonte: Bia Barbosa – Agência Carta Maior