Judiciário retarda o programa de reforma agrária, avaliam especialistas
Desde a divulgação, no final de janeiro, dos números da reforma agrária dos últimos quatro anos – 381,4 mil famílias assentadas, segundo o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) -, voltaram a zunir farpas entre governo e movimentos sociais, como MST e Contag, por conta de desacordos sobre os critérios utilizados para mensurar o resultado. Enquanto um lado comemorou publicamente a aproximação da meta do Plano Nacional de Reforma Agrária, fixada em 400 mil famílias assentadas entre 2003 e 2006, o outro desconsidera, nesta conta, operações como reassentamentos ou regularização fundiária.
À espera da divulgação do detalhamento da contabilidade do MDA para rebater os números oficiais, para os movimentos sociais fato é que a reforma agrária tem caminhado num ritmo lento demais para fazer jus às perspectivas de mudança deste processo, prometidas pelo governo em 2003.
Muitos analistas da reforma agrária debitam na conta do ritmo lento dificuldades operacionais do Incra e o claro favorecimento do governo ao grande agronegócio (leia matéria Programa precisa mais de pacote político que de dinheiro), mas no cerne da questão – e esta é uma avaliação compartilhada pelos movimentos, Incra, procuradores e até promotores do Ministério Público, entre outros – está também – ou principalmente – a atuação predominantemente desfavorável à reforma agrária por parte do Judiciário.
Do alto de sua atribuição de assegurar o Estado Democrático de Direito, os direitos fundamentais do homem e as garantias constitucionais do país, o Poder Judiciário tem optado, nas ações que tangem a questão agrária, pelo viés do Direito enquanto instrumento de conservação e manutenção das estruturas sociais existentes, em detrimento do conceito de Direito enquanto instrumento de promoção das transformações sociais que visem a construção de uma sociedade livre, justa, fraterna e solidária, avalia Valdez Farias, procurador-geral do Incra.
Neste sentido, aponta Farias, um dado paradigmático é a suspensão pela Justiça, nos últimos anos, de 157 ações de desapropriação encaminhadas pelo Incra. Se tivesse podido finalizar estes processos, explica Farias, o órgão teria assentado cerca de 15 mil famílias.
Ainda de acordo com o procurador, em ações de retomada de áreas públicas griladas, que no Norte do país chegam a sete milhões de hectares, o Incra teve grande parte dos 349 pedidos de liminares negados, com vários casos de retirada, por ordem do Tribunal Regional Federal, de trabalhadores rurais de terras da União em benefício de grandes empresas e fazendeiros.
Lado
Um dos casos mais emblemáticos de parcialidade explícita da Justiça, segundo o MST, é o processo que envolve os engenhos da Usina Estreliana, no município de Gameleira, Zona da Mata de Pernambuco. Com a falência decretada em 1998 por conta de uma dívida de cerca de R$ 707 milhões, meses depois os donos da Esteliana foram reempossados pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco. Nos anos seguintes, explica Jaime Amorim, membro da coordenação nacional do MST, a usina repetiu o procedimento de falência e retomada da propriedade por diversas vezes, acumulando dívidas nunca pagas com trabalhadores e fornecedores, e utilizando-se, com aval legal, do artifício de mudança da razão social para acessar as políticas públicas de crédito agrícola.
Composta, segundo Amorim, de mais de 25 engenhos (fazendas independentes ligadas à empresa), desde meados da década de 1990 a Estreliana passou a ter várias áreas reivindicadas para fins de reforma agrária, e hoje abriga seis assentamentos.
Desde a última semana, porém, o destino de 106 famílias assentadas em 1996 por decreto presidencial nos engenhos São Gregório, Alegrinho I e Alegrinho II está nas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF). Nas próximas semanas, o órgão deve decidir um processo no qual o Tribunal Regional Federal da 5ª Região deferiu, por maioria, uma apelação dos usineiros pela anulação do assentamento.
Apesar do recurso do Incra, para quem “o ato expropriatório já foi consumado, não havendo mais possibilidade de se devolver o respectivo imóvel à Usina”, sendo que a expulsão dos assentados significaria grave “lesão à ordem, à segurança e à economia pública, consubstanciado no fato de que 106 famílias vivem no local há mais de 10 anos”, os advogados do MST estão apreensivos. Principalmente porque, em uma apelação recente da usina contra outro assentamento – Pereira Grande, criado por decreto presidencial em março de 2006 -, o STF, contrariando sua própria decisão anterior, deu ganho de causa aos antigos proprietários. Em abril do ano passado, cerca de 40 dias após receberem do oficial de justiça a posse definitiva da área, 50 famílias foram despejadas pela Polícia Militar e tiveram suas roças destruídas. Hoje, aguardam julgamento da apelação do Incra em um acampamento nas proximidades, sobrevivendo de cestas básicas do governo.
“Quero dizer que não acredito mais na Justiça quando o STF garante uma emissão de posse, eu coloco os trabalhadores na área, e poucos dias depois esta decisão é revogada e tenho que tirar as famílias de suas terras debaixo de chicote”, desabafa a superintendente do incra em Pernambuco, Maria de Oliveira.
Desde o início do ano, vários decretos presidências de desapropriação já foram suspensos pelo STF. Acatando ações impetradas pelos antigos proprietários, os ministros Joaquim Barbosa e Ellen Gracie invalidaram o processo de reforma agrária nas fazendas Marobá, Singapura e Tabatinga, em Almenara (MG), e na Fazenda Antas, em Sapé, na Paraíba.
Conservadorismo
Para o juiz de Direito do Rio de Janeiro Rubens Casara, participante de um seminário sobre obstáculos e desafios aos operadores do direito no tema reforma agrária e direitos territoriais, promovido em Recife no final da semana passada pela ONG Terra de Direitos, o MST e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o conservadorismo do Poder Judiciário e a “origem aristocrática” da ampla maioria dos magistrados ainda é, no Brasil, o principal instrumento da manutenção da estrutura social, econômica e política estabelecida.
“O valor preponderante do Judiciário é a autoridade, e é ele que assegura o poder vertical da propriedade. Assim, a decisão judicial se impõe não porque é justa, mas pelo instrumento coercitivo do Estado”, explica Casaro a relação mais ampla do posicionamento conservador da Justiça sobre a questão fundiária com a repressão aos movimentos sociais do campo.
Neste sentido, avalia Edson Guerra, promotor do Ministério Público Estadual de Pernambuco, acabam amplamente desconsiderados não apenas os aspectos sociais dos processos de luta pela terra, como também elementos legais essenciais, como a obrigatoriedade de investigação do cumprimento da função social da terra, prevista na Constituição.
“O Direito que temos resolve a questão agrária, é só aplicar o Estatuto da Terra e a Constituição. O problema é que os magistrados não têm capacitação na área dos direitos humanos. Sem capacitação, não há sensibilidade”, conclui Guerra.
Fonte: Verena Glass – Agência Carta Maior