Ação do Ministério Público gaúcho contra MST repete discurso anti-comunista pré-1964
A inicial da ação civil pública apresentada pelos promotores Luís Felipe de Aguiar Tesheiner e Benhur Biancon Junior, do Ministério Público do Rio Grande do Sul, pedindo a desocupação de dois acampamentos do MST, próximos à fazenda Coqueiros (região norte do Estado), parece uma peça saída dos tempos da ditadura, reproduzindo a paranóia delirante anti-comunista dos anos 50 e 60 que alimentou e deu sustentação ao golpe militar no Brasil.
A Vara Cível de Carazinho deferiu a liminar requerida pelo MP. Na avaliação dos promotores, os acampamentos Jandir e Serraria são “verdadeiras bases operacionais destinadas à prática de crimes e ilícitos civis causadores de enormes prejuízos não apenas aos proprietários da Fazenda Coqueiros, mas a toda sociedade”. Essa terminologia resume uma lógica de argumentação que muitos julgavam estar extinta no Brasil.
Na primeira página da inicial da ação, os promotores comunicam que seu trabalho é resultado de uma decisão do Conselho Superior do Ministério Público do RS para investigar as ações do MST que “há muito tempo preocupam e chamam a atenção da sociedade gaúcha”. O documento anuncia que os promotores Luciano de Faria Brasil e Fábio Roque Sbardelotto realizaram um “notável trabalho de inteligência” sobre o tema. Uma nota de rodapé define o trabalho de “inteligência” realizado nos seguintes termos:
O art. 1º, § 2º, da Lei nº 9.883/99, que instituiu o Sistema Brasileiro de Inteligência e criou a ABIN, definiu a inteligência como sendo “a atividade que objetiva a obtenção, análise e disseminação de conhecimentos dentro e fora do território nacional sobre fatos e situações de imediata ou potencial influência sobre o processo decisório e a ação governamental e sobre a salvaguarda e a segurança da sociedade e do Estado”.
O relatório que segue faz jus a esse conceito, apresentando o MST como uma ameaça à sociedade e à própria segurança nacional. O resultado do trabalho de inteligência inspirado nos métodos da ABIN é composto, na sua maioria, por inúmeras matérias de jornais, relatórios do serviço secreto da Brigada Militar e materiais, incluindo livros e cartilhas, apreendidas em acampamentos do MST. Textos de autores como Florestan Fernandes, Paulo Freire, Chico Mendes, José Marti e Che Guevara são apresentados como exemplos da “estratégia confrontacional” adotada pelo MST. Na mesma categoria, são incluídas expressões como “construção de uma nova sociedade”, “poder popular” e “sufocando com força nossos opressores”. Também é “denunciada” a presença de um livro do pedagogo soviético Anton Makarenko no material encontrado nos acampamentos.
As subversivas Ligas Camponesas e o “movimento político-militar de 1964”
Na introdução da ação, os promotores fazem um “breve histórico do MST e dos movimentos sociais”. Esse histórico se refere à organização do Movimento dos Agricultores Sem-Terra (Master) no Rio Grande do Sul, nos anos 1960, e à “atmosfera de crescente radicalização ideológica”. As Ligas Camponesas de Francisco Julião, em Pernambuco, são acusadas de “sublevar o campo e incentivar a violência contra os proprietários de terra, criando um clima de guerra civil”. Essa “agressividade”, na avaliação dos promotores, contribuiu para o “movimento político-militar de 1964”. O “movimento político-militar de 1964” a que os promotores se referem é o golpe militar que derrubou o governo constitucional de João Goulart, suprimiu as liberdades no país e deu início à ditadura militar.
Logo em seguida, a ação apresenta uma caracterização do MST, toda ela baseada na visão de uma única pessoa, o sociólogo Zander Navarro. O trabalho de inteligência dos promotores também se baseia, em várias passagens, em uma “revista de circulação nacional” (Veja) e em matéria críticas ao MST publicadas em jornais como Folha de São Paulo, Zero Hora e Estado de São Paulo, entre outros. Após apresentar um “mapa” dos movimentos sociais no campo brasileiro, os promotores questionam, em tom de denúncia, as fontes de financiamento público desses movimentos. Eles revelam que “o Ministério Público encaminhou um questionamento ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, acerca da existência ou não de alguma fonte de financiamento ou ajuda, direta ou indireta, aos participantes do MST acampados no Rio Grande do Sul”.
Os promotores citam ainda o relatório da CPMI da Terra, realizada no Congresso Nacional, sustentando que há malversação de verbas públicas, “pelo repasse de dinheiro público efetuado diretamente pelo Incra, na forma de distribuição de lonas, cestas básicas e outros auxílios”. Além disso, citam a “doação de recursos por entidades estrangeiras, notadamente organizações não-governamentais ligadas a instituições religiosas, como a organização Caritas, mantida pela Igreja Católica”. E identificam, em tom crítico, a rede de apoio internacional ao MST que mostraria ao público estrangeiro “uma visão do Brasil frontalmente crítica à atuação do Poder Público e inteiramente de acordo com os objetivos estratégicos do MST”. Citando o jornal Zero Hora, os promotores apontam que a Escola Florestan Fernandes (do MST) foi construída “com vendas do livro Terra, com texto do escritor português José Saramago, fotografias de Sebastião Salgado e um disco de Chico Buarque, além de contribuições do exterior”.
Mídia, PM 2 e Denis Rosenfield: as fontes da argumentação dos promotores
Ao falar sobre a estratégia do MST, os promotores valem-se de relatórios do serviço secreto da Brigada Militar (a PM2). O relatório do coronel Waldir João Reis Cerutti, de 2 de junho de 2006, afirma que os acampamentos do movimento são mantidos com verbas públicas do governo federal, recursos de fontes internacionais e até das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). O coronel Cerutti não apresenta qualquer comprovação da existência do “dinheiro das FARC” e segue falando da suposta influência da guerrilha colombiana sobre os sem-terra. Segundo ele, o MST estaria planejando instalar um “território liberado” dentro do Estado: “Análises de nosso sistema de inteligência permitem supor que o MST esteja em plena fase executiva de um arrojado plano estratégico, formulado a partir de tal “convênio”, que inclui o domínio de um território em que o governo manda nada ou quase nada e o MST e Via Campesina, tudo ou quase tudo”.
Em seguida é apresentado um novo relatório do Estado Maior da Brigada Militar sobre as ações do MST no Estado. Esse documento pretende analisar a “doutrina e o pensamento” do MST, identificando, entre outras coisas, as leituras feitas pelos sem-terra. Identifica um “panteão” de ícones inspiradores do movimento, “a maior parte ligada a movimentos revolucionários ou de contestação aberta à ordem vigente” (onde Florestan Fernandes e Paulo Freire estão incluídos, entre outros). E fala de “uma fraseologia agressiva, abertamente inspirada nos slogans dos países do antigo bloco soviético (“pátria livre, operária, camponesa”)”. A partir dessas informações, os promotores passam a discorrer sobre o caráter “leninista” do MST, invocando como base argumentativa o livro “A democracia ameaçada – o MST, o teológico-político e a liberdade”, de Denis Rosenfield, que “denuncia” que o objetivo do movimento é o socialismo.
Para os promotores, “já existem regiões do Brasil dominadas por grupos rebeldes” (p. 117 da ação). A prova? “A imprensa recentemente noticiou….” (uma referência as ações da Liga dos Camponeses Pobres, no norte do Brasil). Em razão da “gravidade do quadro em exame”, concluem os promotores, “impõe-se uma drástica mudança na forma de trato das questões relativas ao MST e movimentos afins”. A conclusão faz jus às fontes utilizadas no “notável trabalho de inteligência”: “o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra não constitui um movimento social, mas, isso sim, um movimento político”. O MST, prosseguem os promotores, “são uma organização revolucionária, que faz da prática criminosa um meio para desestabilizar a ordem vigente e revogar o regime democrático adotado pela Constituição Federal”. Em nenhum momento da ação, o “notável trabalho de inteligência” dos promotores trata de problemas sociais no campo gaúcho.
Fonte: Marco Aurélio Weissheimer/Agência Carta Maior (18/6/08)