O jurista Dalmo Dallari declara que o fim do Senado só tem efeito com uma reforma política.
A reportagem e a entrevista é de Flávia Tavares, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo
São mais de 650 atos secretos apurados e a contagem continua. Conforme avança a investigação das ordens administrativas que beneficiaram sigilosamente parentes e amigos de senadores, descobre-se que agir em segredo já não era o bastante: até atos "ultrassecretos" foram assinados pela mesa-diretora do Senado.
Acuado, o presidente da Casa, José Sarney, cujos parentes se espalham por gabinetes de colegas, anunciou a instalação de uma comissão de sindicância para apurar as denúncias, a criação de um portal de transparência para que se publique tudo o que acontece ali e uma auditoria externa na folha de pagamento. Mas não sem antes dividir a responsabilidade com os outros senadores e com a instituição: "A crise do Senado não é minha, é do Senado", disse Sarney em discurso aos pares, que aceitaram calados sua parte de culpa.
"O modelo bicameral brasileiro não se justifica", provoca o jurista Dalmo Dallari, que trabalha em um livro sobre o constitucionalismo em que analisa a necessidade de duas casas legislativas. "Para que, além dos representantes do povo, que são os deputados, precisamos de representantes dos Estados, se eles são tão dependentes do governo federal?", questiona o professor da Faculdade de Direito da USP, colocando em xeque uma casa parlamentar que controla um orçamento de R$ 3 bilhões.
Em Fundamentos do Constitucionalismo – História, Política e Direito, a ser publicado ainda este ano, Dallari busca paralelos com os modelos americano, francês e inglês para sustentar que um Legislativo forte não é necessariamente dividido em dois. Mas admite que, isolada, a extinção do Senado não é viável. "É aí que uma reforma política que adote o sistema distrital se faz fundamental", diz. "Esse é o início de uma discussão. É preciso entender que, com um Legislativo melhor, a democracia se fortalece."
Eis a entrevista.
Em seu novo livro, o senhor critica o modelo bicameral do Legislativo brasileiro. Por quê?
É fundamental recuperar a história para entender como nasceu o sistema bicameral. No mundo moderno, há três modelos básicos de Constituição. Um é o inglês, que tem uma peculiaridade: a Constituição é parcialmente escrita e se baseia em grande parte em decisões judiciais, que criam parâmetros para temas importantes. Por esse motivo não é tão imitada. O segundo modelo é o americano, a primeira Constituição escrita da história. E o terceiro é o francês, que se baseou em teorias filosóficas e políticas de pensadores como Rousseau e Montesquieu e foi influenciado pelos EUA, pois também é escrito.
Como surge o bicameralismo em cada um dos casos?
Na Inglaterra, que firmou sua Constituição no final do século 17, o grande desafio da nobreza decadente era conter a burguesia ascendente. Por isso, o parlamento britânico é, ainda hoje, dividido em duas casas: uma é a Câmara dos Lordes, que é a dos nobres. A outra é a Câmara dos Comuns, dos burgueses. Nos EUA, em 1787, nasceu a ideia de uma Constituição para as antigas colônias que, a partir dali, foram chamadas de Estados, mas com o pressuposto de que não perderiam a independência. Os americanos, também influenciados por Montesquieu, defendiam a separação dos poderes. Decidiram num primeiro momento que se criaria um Legislativo em que os membros seriam eleitos pelo povo e que o número de representantes de cada Estado seria proporcional ao número de eleitores.
Por que criaram o Senado então?
Porque surgiu um grave problema: os Estados do norte não tinham escravos. Seu número de eleitores era maior e, portanto, maior seria o número de representantes. Já o Sul, escravista, ficaria com menor representação. Para conter os abolicionistas, criou-se o Senado, com número igual de representantes dos Estados, que deveria confirmar tudo o que fosse aprovado na primeira Casa. Assim, a escravatura durou mais 80 anos nos EUA. A partir daí, houve uma busca de justificativa mais nobre para a existência do Senado: os senadores seriam embaixadores dos Estados junto ao governo central.
Como é o modelo francês?
Ele guarda semelhança com o inglês na inspiração. A primeira Constituição francesa é de 1791, num segundo momento da Revolução, em que as forças populares já não eram tão ativas e a burguesia, que buscava conciliação com o setor progressista da nobreza, tinha assumido o poder. Mas havia uma corrente da burguesia radical com grande poder no Legislativo. Para deter os excessos democratizantes dessa corrente foi que se pensou no Senado, instituído oficialmente na Constituição de 1799 e chamado de poder conservador, porque se queria afirmar que a fase revolucionária havia terminado.
Por que o bicameralismo foi adotado no Brasil?
Na sua primeira fase de país independente, na primeira Constituição, de 1824, o Brasil tomou por base o modelo francês. Foi prevista a existência da Câmara dos Deputados e do Senado, mas com diferenças. Uma delas era a maneira de escolha dos parlamentares. Os eleitores escolhiam os deputados e uma lista tríplice de senadores. O imperador escolhia então o senador a partir dessa lista. O segundo dado é que os senadores eram vitalícios, não tinham mandato. E o terceiro ponto, muito expressivo, é que para ser senador o cidadão precisava ter renda mínima anual de 800 mil réis, uma fortuna. Ou seja, o Senado nasceu como uma casa feita para abrigar os oligarcas, que lá se mantêm até hoje.
A estrutura mudou na República?
Em 1891, o Brasil fez uma adaptação para o modelo americano, com destaque para a figura de Rui Barbosa, que conhecia bem o sistema dos EUA. Estabeleceu-se como lá o princípio da separação de poderes. Em relação ao Legislativo, decidiu-se por um sistema bicameral, com os senadores eleitos pelo povo e dando ao Senado o poder de revisão. Por conveniência, para estabelecer um paralelismo com os EUA, as províncias viraram Estados. Mas só no nome. A figura do senador como representante dos Estados, no Brasil, não tem sentido, porque os Estados brasileiros não são soberanos. Eles podem tomar decisões sobre uns assuntos, mas não sobre outros, reservados ao poder central. Mesmo nos EUA não são tão soberanos assim. Chamar as antigas colônias de Estado foi um artifício para criar a fantasia de que elas continuariam autônomas mesmo sob um governo comum.
A Constituição define os senadores como representantes dos Estados da Federação?
Sim, mas a nossa é uma falsa federação, porque temos falsos Estados. O Artigo 46 da Constituição diz que o Senado se compõe de representantes dos Estados e do Distrito Federal. Mas, de fato, não há nenhuma justificativa para que, além dos representantes do povo, haja representantes dos Estados, tão dependentes que são do governo central. Senão, por que não criar também uma câmara federal para representar os municípios? Afinal, nosso federalismo é de três níveis.
Por que os senadores não agem para aumentar a autonomia dos Estados que eles representam?
Porque a medida que existe para que eles manipulem o poder é suficiente. Não há interesse de ampliar essa autonomia, só pensam em brigar pelo poder.
Quem está ganhando essa briga?
As oligarquias ficaram muito fortalecidas, tanto que duram até hoje. Existem esquemas políticos estaduais que dominam o sistema político. Os oligarcas mantêm o povo em situação de dependência. O Maranhão é o Estado brasileiro com maior índice de analfabetos. Isso gera uma submissão total, porque os mais pobres ficam gratos quando têm escola ou hospital e reelegem aquele senador. Como os oligarcas estaduais têm muita força eleitoral, acabam usando isso para composições políticas. Para que o governo central tenha apoio de um Estado, é preciso negociar com os parlamentares de lá e a influência do senador nisso é enorme.
Mas José Sarney teve de sair do Maranhão para se eleger no Amapá.
Porque surgiram tantas denúncias contra o grupo Sarney que a situação ficou insustentável. O Maranhão tem uma história de miséria e isso fez com que surgisse uma oposição forte, que começou a esclarecer os eleitores e fez com que a base de Sarney fosse diminuída. Estive no Amapá há algum tempo e, quando perguntei a alguns moradores se eles eram de lá, a maioria respondia ser do Maranhão. Era a população transplantada pelo Sarney para se eleger senador no Amapá. Pessoas miseráveis que continuaram miseráveis em outro lugar, mas profundamente agradecidas pelo pedacinho de terra que ganharam para sobreviver.
Sarney chegou à Presidência da República e optou por voltar ao Senado. Por que não seguir o caminho de agir nos bastidores da política?
Ele volta porque gosta de se sentir um senhor feudal. Com isso, além de conseguir benefícios pessoais, ele beneficia também seus amigos e sua família. Agora, o espaço dos senhores feudais está diminuindo gradativamente. Ainda vai levar um tempo, mas já está acontecendo.
Nos EUA, na Inglaterra e na França, discute-se o fim do bicameralismo?
Muitos teóricos ingleses admitem que a Câmara dos Lordes é uma fantasia. Ela foi perdendo poder e as decisões são tomadas na Câmara dos Comuns. Na França, o Senado ainda mantém poder político, embora mais restrito, porque desapareceu o dualismo entre o resto da nobreza e a burguesia. Somente nos EUA o Senado é realmente forte, porque expressão do poder dos Estados. No Brasil, não há justificativa teórica nem de organização democrática para a necessidade do Senado. Na prática, o Senado é e sempre foi um anteparo contra excessos democratizantes. O papel que a Constituição lhe atribui é muito mal exercido. Reservaram-lhe algumas funções para diferenciá-lo da Câmara, mas no processo legislativo ele é igual. Por exemplo, ele tem a atribuição de aprovar não só operações financeiras externas da União, dos Estados e municípios como também a escolha de um ministro do STF e do Banco Central. E todas as leis têm de passar pelas duas casas. O desaparecimento do Senado não faria diferença no processo legislativo.
Seria uma instância a menos de decisão e de discussão de leis.
Sim, mas na Câmara a representação é proporcional. Ali, aquela regra "um eleitor, um voto" realmente vale. Ao passo que no Senado, como todos os Estados têm o mesmo número de senadores, aqueles que têm um número muito menor de eleitores têm o mesmo peso que os que têm um grande eleitorado, o que é antidemocrático e quebra o princípio da igualdade. O que vai garantir a democracia é que haja a transparência no Legislativo e maior participação do povo. As instâncias de decisão não precisam ser "para cima", podem ser "para baixo", com organizações da sociedade civil, associações, universidades. Também poderia ser mais usado o instrumento do plebiscito, da consulta de prioridades.
O Brasil tem um trauma de déficit democrático que foi o período da ditadura. Eliminar uma instituição democrática não é uma medida drástica demais?
Haverá resistência, por isso essa proposta tem de ser amplamente discutida, para que as pessoas façam uma reflexão e percebam que não há ameaça na introdução de mudanças que, bem ao contrário disso, depuram a democracia. Antidemocrático seria eliminar o Legislativo. Aliás, eu como jurista não posso perder de vista o que diz a Constituição. Ela estabelece como princípio a separação dos poderes e diz que haverá um Legislativo, um Executivo e um Judiciário, mas não exige um Legislativo bicameral. O princípio democrático é um Legislativo eleito pelo povo, mas a par disso a Constituição afirma a igualdade de todos, e o Senado é a expressão da desigualdade.
O senador Cristovam Buarque sugeriu há algum tempo um plebiscito para se questionar a existência do Congresso, o que causou um estardalhaço enorme.
Ele disse que o Congresso estava de tal forma desmoralizado que, se perguntássemos ao povo, talvez eles dissessem que seria melhor fechá-lo de uma vez. Essa ideia soou de uma forma errada, mas ele é um democrata. Isso mostra que o Brasil não tem ambiente para que se proponha o fim do Senado, não neste momento. Mas é preciso iniciar essa discussão, levantar a ideia, provocar o interesse. O assunto tem que ser discutido nas universidades e nas associações de maneira geral.
Sarney disse que a crise não é dele, mas do Senado. Como o senhor analisa essa declaração?
Ele só se esqueceu de que o Senado é o conjunto de senadores. Há sem dúvida uma crise individual também. De uma geração para outra, é preciso que se adote um comportamento diferente. É o caso ACM: o neto está longe de exercer a ascendência do avô e não há nenhuma perspectiva de que ele conquiste o mesmo poder. Isso deve acontecer também nos outros Estados e daqui para frente vai ser cada vez mais difícil manter essa dominação absoluta, até mesmo porque a imprensa está fazendo denúncias e ajudando a conscientizar a população.
Houve senadores que foram fundamentais na história do País?
Sim, já tivemos grandes figuras lá. No período monárquico, posso citar Barão do Rio Branco, que trabalhou muito para definir o Brasil como um Estado soberano. Rui Barbosa contribuiu imensamente para a instalação do sistema republicano no País. E Afonso Arinos, grande personagem político desde 1946, assessorou Ulysses Guimarães quando Tancredo morreu e houve um temor de que os militares voltassem ao poder. Mas o Senado como instituição nunca foi crucial. Eu diria que o Legislativo é essencial, não o Senado. Atualmente, existem senadores absolutamente respeitáveis, mas que são figuras isoladas. Além disso, há muitas pessoas competentes e bem intencionadas que se recusam a entrar para a política, justamente para não se desmoralizar ou para não se verem obrigadas a fazer concessões.
Nesse sentido, não seria mais importante moralizar a política do que fechar uma Casa?
Unificar o Legislativo é um dos passos para a moralização da política. Não há razão política, no sentido próprio da expressão, que justifique a existência do bicameralismo. E não há um caminho imediato de moralização, é um trabalho de longo prazo.
O caminho seria a reforma política?
A extinção do Senado só tem efeito com uma reforma política. E numa verdadeira e boa reforma política deveríamos introduzir os distritos eleitorais. No sistema distrital, o candidato só pode ser votado numa circunscrição pequena e o eleitor sabe exatamente em quem está votando, conhece seus antecedentes. Sozinha, a extinção do Senado teria bem menos sentido, embora eliminasse uma despesa enorme, de R$ 3 bilhões anuais, com despesas particulares dos senadores e de seus parentes e cabos eleitorais. Mas para ter uma boa reforma política seria necessário mudar a forma de escolha dos deputados, para que o Legislativo unicameral ficasse forte o suficiente.
Sarney declarou também que a democracia representativa está em crise e que caminhamos para uma democracia direta. O senhor concorda?
O Brasil tem o privilégio de ter uma das poucas constituições do mundo que contemplam tanto a democracia representativa quanto a direta. Nesse sentido, o voto distrital não chega a ser uma forma direta, mas aproxima muito mais o representante do representado. Precisamos aperfeiçoar a representação. Vou dar um exemplo claro: a senadora Kátia Abreu, do Tocantins, fala contra o ministro Carlos Minc se autodefinindo como representante do agronegócio, não do Estado. Outro exemplo: há alguns anos, quatro senadores foram ao Pará para pedir que a fiscalização do trabalho escravo acabasse. Isso é do interesse da população ou do Estado que eles representavam? Mesmo a candidatura deles é decidida por cúpulas políticas, fora o sistema absurdo e escandaloso de suplentes de senadores. Há inúmeros casos em que o suplente é um parente do senador ou um de seus cabos eleitorais ou um financiador. Isso não é democrático nem representativo.
Os senadores também representam seus partidos.
Mas os partidos não representam uma corrente de opinião e sim alguns interesses específicos. Os eleitos, com algumas exceções, também são ligados a interesses econômicos. E o governo central negocia com esses interesses em vista.
Há denúncias de mais de 650 atos secretos no Senado e, agora, até de atos "ultrassecretos". Como fazer para abrir de vez essa caixa-preta?
Com muita publicidade e transparência. O Judiciário era muito fechado, começou a se abrir com a Constituição de 1988 e isso tem sido altamente benéfico. Por outro lado, esses atos secretos do Senado me parecem mais um fato isolado daqueles que ainda perduram. O fato de termos uma imprensa livre e um Ministério Público que pode fazer e faz investigações tornam muito difícil a manutenção de segredos. Mas isso não quer dizer que do dia para a noite vá haver plena transparência. Estamos caminhando para isso e esses atos secretos virem à tona é bom sinal. E, na parte do sistema administrativo, o Tribunal de Contas pode e deve atuar. Aquilo que configura ilegalidade é assunto para o MP.
Além da reforma política, o senhor sugere outras medidas para que o Legislativo ganhe a confiança da população?
Sim, uma alternativa seria extinguir as medidas provisórias, que temos em quantidade absurda. Elas não deveriam existir num sistema democrático em que o Legislativo é eleito, é representante do povo. Medidas provisórias só cabem quando não há funcionamento do Legislativo. Talvez ele nunca tenha funcionado em sua plenitude, mas nos últimos tempos, com o envolvimento maior do Estado na vida social, a necessidade de um bom Legislativo cresceu, para que ele não seja ditatorial ou arbitrário. Só que estamos num círculo vicioso: não melhoramos porque não melhoramos. Se tivéssemos melhores legisladores, melhoraríamos o sistema, que melhoraria a vida da população, que votaria em melhores legisladores. Em todo caso, esse trabalho não será feito rapidamente. A população não percebe que seu desencanto com a política piora a situação. Só perceberá com um trabalho de educação, e é aí que as organizações sociais e as escolas entram de forma fundamental.
Fonte Estadão