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CPI da Dívida sofre boicote no governo, na Câmara e na mídia

Renato Godoy de Toledo
da Redação

A dívida pública brasileira tem aumentado nos últimos anos. Enquanto isso, o pagamento de juros e amortizações compromete anualmente cerca de 30% do orçamento e 5% do produto interno bruto (PIB), o que restringe a política econômica e o gasto público. Atualmente, a dívida brasileira atinge o patamar de R$ 1,6 trilhão. O gasto anual com a rolagem é de cerca de R$ 165 bilhões.

Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara Federal investiga os indícios de ilegitimidade desse débito. Porém, o assunto parece não ter relevância para grande parte da imprensa brasileira.

Instalada em agosto de 2009, a consolidação da CPI em si já é considerada vitoriosa pelos proponentes e pelos movimentos que lutam por uma auditoria da dívida brasileira. O processo de criação da comissão requereu um esforço dentro e fora do Congresso, com o recolhimento de assinaturas e realização de debates.

A comissão não contou com a simpatia nem da base governista, nem da oposição de direita, segundo o deputado federal Ivan Valente (Psol-SP), proponente da CPI. Por uma questão regimental, a comissão teve que entrar na ordem do dia e foi assegurada pelo então presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia (PT-SP) e confirmada pelo atual Michel Temer (PMDB-SP).

De acordo com Valente, o tema passa por todos os setores da sociedade, daí a importância de se trazer a questão para a ordem do dia no Congresso Nacional. “A dívida brasileira é o principal nó em nossa economia. Além do que essa insanidade de pagar a dívida religiosamente contribui para a ideia de ter um superávit primário, o que tira recursos da saúde e da educação”, justifica.

Composição desfavorável

A composição da mesa teve uma demora inédita: seis meses. Contra a morosidade, Valente ameaçou levar o caso ao Supremo Tribunal Federal (STF) e a Câmara, enfim, acatou o pedido.

Mas o mais inusitado foi a escolha dos representantes da mesa. Há um acordo tácito na Câmara que garante ao proponente da CPI a presidência ou a relatoria, mas Valente não obteve nenhuma das duas.

A presidência da comissão ficou com o deputado Virgílio Guimarães (PT-MG) e a relatoria com Pedro Novais (PMDB-AP), que também foi relator da Lei de Responsabilidade Fiscal – dispositivo que restringe o gasto público para honrar as dívidas.

Boicote total

Segundo Valente, há um boicote do governo e da oposição de direita para não trazer “figurões” da gestão atual e anterior. “Tentamos trazer o [Pedro] Malan e o [Antonio] Palocci [ambos ex-ministros da Fazenda] e até o Fernando Henrique Cardoso, mas a base do governo e o PSDB boicotam essas convocações. Ainda não ouvimos o [Henrique] Meirelles e o [Guido] Mantega. Inclusive, há uma orientação do governo para que eles não sejam convocados”, afirma o parlamentar.
O principal figurão a depor na comissão foi o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga. Em seu depoimento, o banqueiro afirmou que a dívida brasileira é “pesada e grande, mas administrável”.

Além dessa resistência no parlamento, Valente relata o descaso da grande imprensa em relação ao tema. “Há um boicote total. A Folha de S.Paulo, por exemplo, se recusou por três vezes a publicar um artigo nosso sobre a CPI. Esses veículos são financiados por grandes bancos, que se beneficiam do pagamento da dívida”, analisa.

Procedimentos

Até o momento, os debates na CPI circundam a questão do endividamento dos Estados, que exigem renegociação, e, quando puxado pelo proponente e pelos movimentos, discutem a política econômica por meio do pagamento religioso de juros e amortizações.

A comissão se encontra em fase final e o relator Pedro Novais deve apresentar o seu parecer em meados de março. Valente prevê que o relatório deve ser conservador e sua assessoria já analisa dados levantados para propor um documento alternativo, que pode ser votado na comissão.

“Estamos analisando para ver se há irregularidades no pagamento da dívida. Encontramos algumas coisas, mas não podemos adiantar”, explica o deputado.

Auditoria da dívida está prevista na Constituição

CPI é primeiro passo para a auditoria, aponta Maria Lucia Fattorelli

Renato Godoy de Toledo
da Redação

A coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lúcia Fattorelli, aponta que o principal motivo para se levar a fundo a CPI da Dívida Pública é o fato do passivo gerar o maior gasto no orçamento brasileiro. Para ela, a Comissão é uma conquista, mas o desafio agora é conquistar uma auditoria oficial da dívida brasileira, conforme previsto na Constituição de 1988. Leia abaixo entrevista com Fattorelli.

Brasil de Fato – Qual é a importância de se instaurar uma CPI da dívida Pública?

Maria Lucia Fattorelli – A dívida pública federal superou a casa dos R$ 2 trilhões em dezembro e consumiu 36% dos recursos federais durante 2009, conforme dados do Banco Central e do Tesouro Nacional. Esse crescimento espantoso tanto do estoque da dívida como do volume de pagamentos é fruto da política econômica aplicada no país que, além de praticar as taxas de juros mais elevadas do mundo, ainda privilegia os gastos financeiros em detrimento dos gastos sociais.
Diante desse quadro, a CPI foi criada com o objetivo de investigar a dívida pública, o pagamento de juros e seus impactos sociais, pois enquanto o pagamento de juros e amortizações da dívida consumiram 36% dos recursos federais em 2009, a Saúde recebeu pouco mais de 4% e a Educação pouco mais de 2%, sendo que todas as demais áreas sociais ficaram também prejudicadas.

Portanto, a investigação do endividamento é fundamental, pois esse é o gasto público mais relevante do país e influencia a vida de toda a população, que paga a dívida tanto por meio da elevada carga tributária como pela insuficiência de serviços públicos de qualidade.

Adicionalmente, a CPI da Dívida Pública constitui um primeiro passo para o cumprimento da determinação contida na Constituição Federal de 1988 (art. 26 do Ato das Disposições Transitórias), que determina a realização de uma auditoria da dívida externa brasileira, até hoje não realizada.

Como está o andamento da CPI em termos políticos e em termos de investigação?

A CPI constitui um marco histórico, pois propiciou o acesso a diversos documentos públicos que nunca haviam sido divulgados à sociedade, além de expor o debate sobre a grave situação do endividamento público brasileiro, abrindo espaço em diversos meios de comunicação que se encontravam bloqueados ao tema.

As audiências públicas realizadas pela CPI contaram com a participação de importantes convidados, que demonstraram que a dívida pública é o problema central do país.

A CPI possibilitou também corrigir o equívoco amplamente divulgado no sentido de que a dívida brasileira teria “acabado”, demonstrando que o pagamento antecipado da parcela que devia ao FMI em 2005 significava uma parte pequena do volume da dívida pública brasileira e que, apesar daquele pagamento, o Brasil continuou aplicando o receituário econômico do FMI.

Por outro lado, a CPI da Dívida enfrentou limitações. A primeira é relacionada ao curto período de funcionamento da Comissão, insuficiente para investigar tema tão vasto e importante. O acesso a muitos documentos também ficou prejudicado, pois o período de investigação determinado pelos parlamentares foi desde 1970 para a dívida externa e desde 1987 para a dívida interna. Dessa forma, os órgãos responsáveis pelo controle do endividamento – Banco Central e Tesouro Nacional – enfrentaram dificuldades de localizar parte dos documentos e registros requisitados pela CPI e apresentaram solicitações para a prorrogação de prazo para o atendimento.

Em termos políticos, é preciso ressaltar que diversas entidades da sociedade civil têm sido assíduas em todas as audiências públicas da CPI, dando uma clara demonstração do interesse dessas entidades pelo tema. A Auditoria Cidadã da Dívida tem divulgado boletins semanais sobre as audiências públicas realizadas pela CPI, disponíveis no site da Auditoria Cidadã.

Quais são os indícios de que a dívida que o país paga é ilegítima?

Várias questões de ilegitimidade marcam o processo de endividamento brasileiro, tanto interno quanto externo. Nas sessões públicas da CPI já foram levantadas, por exemplo, a repercussão da elevação unilateral das taxas de juros internacionais a partir de 1979, pelos Estados Unidos, de 6 para 20,5%, o que provocou tremenda crise financeira e a multiplicação da dívida por ela mesma. Com base nos dados recebidos pela CPI, caso os juros tivessem sido mantidos no patamar de 6%, os pagamentos efetuados para quitar os extorsivos juros teriam sido suficientes para eliminar a dívida então existente, e nos tornaríamos credores.

Também foi debatido na CPI o impacto da utilização da dívida pública na sustentação do Plano Real, bem como a participação de representantes do mercado financeiro nas reuniões com o Banco Central, que influenciam a decisão sobre a taxa de juros.

Esses são apenas exemplos do que foi publicamente debatido, e muitas investigações estão em fase de finalização e conclusão e em breve serão divulgadas.

Na sua opinião, o desfecho da CPI pode levar a alguma ação estatal, como uma auditoria, por exemplo?

Sem dúvida, as investigações realizadas pela CPI comprovarão a necessidade de realização da auditoria da dívida, podendo também instigar ações por parte de diversos órgãos, como o Ministério Público, para o aprofundamento das investigações, bem como o questionamento da legalidade de vários aspectos da dívida pública, tais como a prática de juros flutuantes, exigência de juros sobre juros, dentre outras questões.

A participação das entidades e movimentos sociais nos debates da CPI e no conhecimento do resultado das investigações tem papel fundamental para que o desfecho da CPI possa ser utilizado em favor da implantação de um modelo econômico mais justo, melhorando as condições sociais tão precárias de um país que tem historicamente destinado a maior parte de suas riquezas para o capital.

Quem é
Maria Lucia Fattorelli é coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida e foi requisitada para assessorar a CPI da Dívida Pública na Câmara dos Deputados.

Fonte: Brasil de Fato