“Terceirizações devem acelerar a expansão do precariado no Brasil”
Economista com Ph.D. pela Universidade de Cambridge e professor de Desenvolvimento na Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres, Guy Standing há tempos alerta para o fenômeno da emergência do precariado, uma nova classe trabalhadora em formação, caracterizada pela trajetória de perda de direitos que os reduz à condição de suplicantes, em um mundo marcado pela “flexibilização” das relações trabalhistas. Autor do livro O Precariado: A Nova Classe Perigosa (Editora Autêntica, 2013), ele é entusiasta de programas de renda básica, entendido como uma garantia incondicional e universal, uma vez que os antigos instrumentos de proteção da socialdemocracia trabalhista acabaram solapados pela onda neoliberal.
“Se tivéssemos um novo sistema de distribuição de renda do século 21, não haveria grandes problemas com a instabilidade do trabalho. Poderíamos inclusive absorvê-la sem transtornos”, diz, em entrevista por escrito a CartaCapital.
CartaCapital: Para muitos analistas, o trabalho desempenhado pelo precariado é, por sua natureza, frágil e instável. Ele costuma estar associado à sazonalidade, à informalização, ao regime de tempo parcial, ao falso autoemprego, entre outras formas de trabalho “flexível”. O que distingue o precariado dos demais grupos sociais?
Guy Standing: A falta de segurança no trabalho sempre existiu. Isso não é o que define o precariado. Os integrantes desse grupo estão sujeitos a pressões que os habituaram à instabilidade em seus empregos e suas vidas. Mas, de forma ainda mais significativa, os trabalhadores do precariado não possuem qualquer identidade ocupacional ou uma narrativa de desenvolvimento profissional para suas vidas. E, ao contrário do antigo proletariado, ou dos assalariados que estão acima no ranking socioeconômico, o precariado está sujeito à exploração e diversas formas de opressão por estarem fora do mercado de trabalho formalmente remunerado. Ainda assim, o que distingue o precariado é a sua trajetória de perda de direitos civis, culturais, políticos, sociais e econômicos. Eles não possuem os direitos integrais dos cidadãos que os cercam. Estão reduzidos à condição de suplicantes, próximos da mendicância, pois são dependentes das decisões de burocratas, instituições de caridade e outros que detém poder econômico.
CC: Caso o Parlamento brasileiro aprove a liberação das terceirizações de forma indiscriminada, que impactos sociais essa medida poderia ter?
GS: O precariado cresce no Brasil há alguns anos. Acredito que a nova legislação e a continuidade da terceirização e da subcontratação pelas empresas devem acelerar este processo, o que pode levar à piora na desigualdade dentro do mercado de trabalho e intensificar a insegurança social e econômica. Tenho defendido há algum tempo que, do ponto de vista analítico e político, precisamos fazer distinções entre as sete formas de insegurança apresentadas em meu livro sobre o precariado. A insegurança empregatícia refere-se à probabilidade da perda de uma relação de emprego com um contratante específico. Isso deve ser distinguido da insegurança no trabalho ou ocupacional. Na verdade, a última é a mais séria. Se alguém vive uma situação de emprego terrível, ter uma estabilidade de longo prazo não é atraente.
O problema é, principalmente, o da insegurança na remuneração. Se houvesse políticas sensíveis para garantir a segurança da remuneração, como por meio de uma renda mínima, poderíamos aceitar a insegurança no emprego. A insegurança ocupacional é de outra natureza, já que buscamos desenvolver uma identidade ocupacional, e muitos gostariam de fazer o mesmo. A realidade, no Brasil e no mundo, é que medidas como a nova legislação das terceirizações no País intensificarão todas as formas de insegurança social e econômica. Esta é a tragédia da socialdemocracia trabalhista no século 20. Mas o precariado está evoluindo, e nos levará a novas opções políticas no futuro.
Para Standing, terceirizações vão intensificar todas as formas de insegurança social e econômica
CC: Em seu livro, o senhor observa que o precariado não é uma classe organizada que luta pelos próprios interesses. Ao contrário, o grupo parece estar em guerra consigo mesmo. Um trabalhador temporário e com baixo salário pode ser induzido a pensar que um trabalhador com direitos é um “parasita de benefícios sociais”. Isso não favorece a emergência de radicalismos?
GS: Em O Precariado: A Nova Classe Perigosa, e mais sistematicamente em meu novo livro, A Precariat Charter (recém-lançado no Reino Unido, sem tradução para o português), argumento que o precariado até o momento representou uma classe-em-formação. A maioria de seus integrantes sabe o que não quer, antes de saber o que quer. Isso está mudando de forma impressionantemente rápida, muito mais veloz do que durante a emergência do proletariado no século XIX e começo do século XX. Sim, inicialmente o precariado é dividido internamente, em três partes que identifico em meu livro: reacionários, nostálgicos e progressistas. Mas a terceira facção tem crescido de forma relativa e absoluta, e este setor começa a definir uma nova política progressista, particularmente em países como Espanha, Portugal, Itália, Grécia e partes da Escandinávia.
Claro, devemos nos preocupar com os reacionários, aqueles que caíram no precariado depois de fazerem parte de famílias e comunidades de trabalhadores tradicionais. Eles tendem a ter pouca instrução, e dão ouvidos ao que chamo de “sirenes do populismo neofascista”. Eles estão se tornando a infantaria de partidos populistas de direita, como a Aurora Dourada na Grécia e a Frente Nacional na França. Mas acredito que muitos dos atraídos para esta direção só o fazem porque a parte nostálgica do precariado ainda não definiu uma alternativa, uma perspectiva para o futuro. Meu novo livro trata disto.
CC: Diante da globalização e da hegemonia do ideário neoliberal, existe alternativa a esse constante processo de precarização?
GS: Defendo que usemos o termo trabalho instável ou inseguro, e reservemos a ideia de precariedade apenas para os suplicantes. Isto é o que define o precariado. Se tivéssemos instituições e um novo sistema de distribuição de renda do século 21, não haveria grandes problemas com a instabilidade do trabalho. Poderíamos inclusive absorvê-la sem transtornos. Devíamos nos distanciar da romantização do trabalho estável, integral e de longo-prazo. É uma forma real de falsa conscientização. Para muitas pessoas, certamente é pouco saudável e atraente enfrentar uma vida de trabalho tediosa e alienante em um emprego, que se aceita apenas por necessidade. O que é desejável é um conjunto de políticas que permitam a troca de emprego, diversas combinações de tipos de atividades e de trabalho, e assim sucessivamente. Sim, há alternativa. Eu a apresento no meu novo livro. O sistema de distribuição de renda do século 20 quebrou. Precisamos construir um novo sistema de distribuição de renda e recuperar a Grande Trindade – Igualdade, Liberdade e Fraternidade – sob a perspectiva do precariado. Esta luta está apenas começando, mas já começou.
CC: O Brasil ainda vive um processo de crescimento demográfico. Após 2030, a população brasileira envelhecerá, porém, de forma bastante rápida. A Europa testemunhou essas mudanças demográficas há mais de 30 anos. O Brasil pode resistir às pressões neoliberais de reduzir seus gastos com seguridade social após 2030?
GS: Sim, é claro que o Brasil pode resistir à lógica neoliberal, se o precariado puder se transformar em uma força para liderar a oposição ao neoliberalismo. Mas as instituições e ideologias políticas no País têm de evoluir. Um dos dilemas políticos na Europa é que os idosos têm sido contemplados com uma parte desproporcional dos gastos sociais. O Brasil também sofreu um pouco com este problema. Mas na Europa a situação é pior, pois os idosos têm uma alta tendência de votar nas eleições. Logo, os políticos não enfrentam as desigualdades etárias dos gastos sociais por motivos eleitorais. No Brasil, isso é menos provável por causa do voto obrigatório. Mas o oportunismo político não está ausente.
Acredito que devíamos dar muito mais atenção para a necessidade de cortar subsídios públicos para grandes empresas, para os ricos e para a parte mais desenvolvida dos assalariados. Precisamos fazer uma campanha por uma “fogueira dos subsídios”. Eles são enormes, distorcidos, encorajam a ineficiência econômica, muitas vezes são corrompidos e, acima de tudo, são regressivos. Na busca de uma nova estratégia para a renda mínima, o que é essencial para o precariado, reduzir subsídios é essencial. Temos de ter em mente que nenhuma outra base de proteção social seria apropriada para o precariado. A partir daí, os envolvidos poderiam tolerar toda a insegurança empregatícia, uma caraterística central da globalização e da revolução tecnológica que estamos vivendo. A abordagem mais estúpida seria tentar frear as várias formas de relação trabalhista que estão em desenvolvimento. O precariado poderia aceitar a insegurança no trabalho se tivesse segurança de renda. Esse deveria ser o acordo.