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A Tendência à Abolição do Direito Fundamental dos Trabalhadores à Previdência na PEC 6/2019

Por Rogério Viola Coelho, Advogado

  1. O direito fundamental dos trabalhadores à previdência, consagrado na Constituição entre os direitos sociais (art 6º), abrange o universo das pessoas que tem uma atividade determinada – o trabalho.

            Enunciado no artigo 6º abstratamente, o direito é concretizado na parte orgânica da Constituição, no título VIII, que trata da ordem social. Aqui são identificados os titulares da obrigação que corresponde ao direito: i)  toda a sociedade, mediante recursos orçamentários do Estado (provenientes das receitas tributárias dos entes federados); ii) os empregadores; iii) os próprios trabalhadores (e demais segurados), conforme art. 195 da CF. Além disto, são estabelecidos os critérios para a aquisição do direito aos benefícios que integram o direito à previdência (art. 201); e os requisitos principais para aposentadoria (§ 7º).   

O direito fundamental à previdência outorgado aos trabalhadores públicos é positivado no Título III, que trata da Organização do Estado, capítulo da Administração Pública. No artigo 40, o constituinte originário assegurou ao servidor público regime de previdência de caráter contributivo e solidário, atribuindo a obrigação correspondente a este direito ao ente público tomador do trabalho e ao próprio servidor. Além disto, determinou as modalidades de aposentadoria e pensões, todas elas de benefício definido; é dizer, o benefício tem o valor determinado.

  1. Qual o significado institucional da positivação do direito dos trabalhadores privados e públicos à previdência no patamar constitucional, depois de tê-lo consagrado no rol de direitos fundamentais? O constituinte originário, além da existência do direito fundamental, posto no umbral da Constituição, quis assegurar a identificação dos sujeitos passivos, titulares da obrigação correspondente. Adiantou ainda a forma concreta que o direito assumiria no ordenamento, estabelecendo modalidades e critérios para o seu exercício.

O efeito jurídico da constitucionalização dos elementos constitutivos desse direito é o de colocá-los fora do alcance da vontade das maiorias eventuais. Somente por emenda constitucional podem ser modificados, ainda assim sem que vontade da maioria qualificada exigida tenha discricionariedade ilimitada.

               O projeto de emenda, encaminhado agora pelo novo governo, promove a desconstitucionalização do direito à previdência dos trabalhadores públicos e privados, remetendo toda a sua regulamentação para o legislador infraconstitucional, que poderá doravante alterar os requisitos, os critérios, a medida e a própria natureza dos benefícios. Nos dois regimes – o regime geral e o próprio dos servidores públicos – eles são de benefício definido e a PEC prevê a sua substituição por sistemas de contribuição definida, autorizando a instituição do sistema de capitalização individual pela maioria eventual, através de lei complementar.

O propósito do governo ao propor a desconstitucionalização do direito fundamental dos trabalhadores à previdência foi explicita: a PEC desloca toda a sua regulamentação para o legislador ordinário, autorizando-o a instituir o sistema de capitalização individual, para reduzir a dificuldade de sua aprovação.  Tal sistema consiste basicamente na criação de uma poupança forçada por parte do trabalhador, impondo-lhe uma contribuição definida, para constituir, ao fim de dezenas de anos, um benefício totalmente indefinido. É introduzido no corpo da Constituição o art. 201-A, que dispõe:

Art. 201-A. Lei complementar de iniciativa do Poder Executivo federal instituirá novo regime de previdência social, organizado com base em sistema de capitalização, na modalidade de contribuição definida, de caráter obrigatório para quem aderir, com a previsão de conta vinculada para cada trabalhador e de constituição de reserva individual para o pagamento do benefício, admitida capitalização nocional, vedada qualquer forma de uso compulsório dos recursos por parte de ente federativo.

O sistema de capitalização previsto para o regime geral teria  caráter opcional. Entretanto, esta será uma discricionariedade fictícia dada ao trabalhador, uma vez que o empregador pode, na prática, condicionar a contratação, admitindo somente trabalhadores que tenham aderido a este sistema. Devemos apreender as lições da história, relembrando a “opção” dada aos trabalhadores quando da instituição do FGTS em substituição à estabilidade.

No art. 40, que regula a previdência pública (regime próprio) é introduzida no § 6º norma que impõe aos entes federados a criação de tal sistema, que será obrigatório para os trabalhadores do Estado.

  • 6º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão para o regime próprio de previdência social o sistema obrigatório de capitalização individual previsto no art. 201-A, no prazo e nos termos que vierem a ser estabelecidos na lei complementar federal de que trata o referido artigo.
  1.                Ao autorizar o legislador ordinário a instituir o sistema de capitalização, a emenda proposta está concretamente encaminhando a eliminação da obrigação do Estado e viabilizando também a desoneração do empregador. O precedente próximo da adoção do sistema de capitalização individual foi o instituído no Chile, que contava com a contribuição apenas do trabalhador, obrigatória, e nenhuma contribuição do empregador ou do Estado. A instituição deste sistema no País latino, na década de oitenta, teve a participação de nosso atual Ministro da Economia, Paulo Guedes, convocado por MILTON FRIEDMAN, então chamado por Pinochet para aplicar no País a sua doutrina – o ultraliberalismo. Detalhe não irrelevante é que nosso Ministro segue hoje defendendo a obra feita na previdência daquele País.

A tendência estabelecida com a aprovação da emenda, portanto, é de instituição de um sistema de capitalização individual que irá levar a eliminação da obrigação dos demais contribuintes do direito fundamental dos trabalhadores à previdência. O único obrigado será o próprio trabalhador, e teremos realizada a tautologia de um direito do trabalhador sobre si mesmo. Em tal sistema a “iniciativa” do trabalhador de investir parte do seu salário não será livre, mas obrigatória; a sua liberdade será a de eleger a empresa privada que vai administrar esse investimento, naturalmente cobrando uma remuneração como taxa de administração, fixada pelo mercado, em regime de concorrência, sem nenhuma garantia real contra a sua insolvência.

Enquanto todas as pessoas têm a liberdade de fazer investimentos no regime de livre iniciativa, para o trabalhador o investimento será imperativo, separando-se, na fonte, parte do seu salário.

  1. Hiering sentenciou, no século XIX, que todo cidadão tem uma obrigação moral consigo mesmo – de defender o próprio direito. Aqui, no inicio do século XXI,  passará a ser desnecessária a luta do trabalhador pelo direito à previdência com a aprovação da PEC. porquanto a doutrina ultraliberal conferiu ao próprio trabalhador a obrigação de prover a sua aposentadoria. É estabelecida para ele uma obrigação jurídica consigo mesmo, cujo adimplemento ficará sob o controle do tomador do serviço, que reterá na fonte uma parte do salário devido, e a repassará a instituições privadas para que façam a gestão dos recursos do trabalhador. Um direito a ser cobrado de si mesmo é – evidentemente – um não direito.

O projeto de reforma da previdência apresentado ao Congresso Nacional, como se vê, instaura uma tendência de abolição do direito fundamental à Previdência como dever do Estado Social, substituído à prestação dos benefícios que o integram, por uma poupança obrigatória do trabalhador para si mesmo. Isto depois de frustrar o acesso aos benefícios definidos no regime geral –  constitucionalizado – elevando períodos de contribuição e estabelecendo idades inalcançáveis para a parte mais pobre da população brasileira.

Mas o trabalhador poderá então ufanar-se de ser um empresário de si mesmo, realizando “no mundo da vida” a nova razão do mundo. E o direito fundamental à previdência continuará decorando o umbral da Constituição como uma simples reserva de valor.

  1. Cumpre avaliar a constitucionalidade da emenda proposta pelo governo, nesta parte. No artigo 60 da Constituição, que regula o poder de emenda, observa-se a norma do § 4º dispondo que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais.

Trata-se de interpretar, no caso em tela, o grau de efetividade que deve ser conferido à norma constitucional a ser retrocedida. ““A interpretação constitucional é ‘concretização’ (Konkretisierung). Precisamente aquilo que não aparece, de forma clara, como conteúdo da Constituição é o que deve ser determinado mediante a incorporação da ‘realidade’ de cuja ordenação se trata. Nesse sentido, a interpretação constitucional tem caráter criativo: o conteúdo da norma interpretada só se completa com a sua interpretação; mas, veja-se bem, só em tese possui caráter criativo, pois a atividade interpretativa fica vinculada à norma

Como se demonstrou, é notória a tendência estabelecida pela proposta de emenda de abolir concretamente o direito fundamental à previdência para os trabalhadores públicos e privados, impondo a sua substituição por uma poupança forçada, que imputa ao titular do direito a obrigação correspondente.

Claro o ferimento do art. 60, § 4º da CF, inclusive pelo impulso interpretativo originário do preâmbulo da Constituição:

“(…)nos preâmbulos se encontra sintetizada a expressão da vontade do autor da norma – síntese que se torna independente ou objetiva da dita vontade –  enquanto deles se recolhem os fins ou objetivos pelos quais o legislador atuou e para alcançar o que ele fez de certa maneira, consideramos que os textos preambulares podem desempenhar um papel fundamental para a interpretação tanto sociológica como teleológica de qualquer texto normativo, incluída, é claro, a Constituição.”

Observa-se, ainda, que:

Primeiro: a emenda começa decretando a supressão da jus fundamentalidade do direito fundamental dos trabalhadores à previdência,   no exato momento da entrega a sua sorte ao legislador, que expressa a vontade das maiorias eventuais nas leis complementares autorizadas. A eliminação da tutela jurídica máxima reduz notoriamente a efetividade do direito, o que ofende o direito fundamental consagrado, apontando para a inconstitucionalidade da emenda.  

Segundo: ao autorizar/determinar a instituição de sistemas de capitalização individual pelo legislador infraconstitucional – destinados a isentar  o Estado e o empregador, titulares da obrigação correspondente ao direito fundamental – promove a própria extinção do direito fundamental consagrado e regulado pelo constituinte originário, substituindo-o por um tautológico direito do trabalhador sobre si mesmo.

A inconstitucionalidade da PEC, ao conceber um caminho de fuga para os entes definidos pelo constituinte originário como sujeitos passivos da obrigação fundamental de contribuir para a manutenção dos benefícios previdenciários parece, assim, ser incontornável.

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1 – Dardot, Pierre. Laval, Christian. A nova razão do Mundo – Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo Editorial. 2016.

2 – HESSE, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional; textos selecionados e traduzidos por Carlos dos Santos Almeida, Gilmar Ferreira Mendes e Inocêncio Mártires Coelho. São Paulo: Saraiva, 2009, p.108 e 109.

3 – Tejada, Javier Tajadura. El preámbulo constitucional. Granada: Editorial Comares, 1997. p. 29.