“Dívida cresceu, porém não chega nos cofres públicos, o dinheiro vaza diretamente para o mercado financeiro”, alerta Fattorelli

O debate sobre o orçamento está na ordem do dia. Paulo Guedes, ministro da economia, insiste em defender a EC 95, que congela investimentos em saúde e educação, mas aponta necessidade de congelar os salários dos servidores públicos. O Teto de Gastos cortou bilhões do SUS e da educação pública, porém para ajudar os bancos tem dinheiro, foram liberados nesta pandemia mais de R$1,2 trilhões de reais.

Para entender como a dívida pública e o benefício dos bancos privados estão diretamente ligados à realidade da população, convidamos Maria Lucia Fattorelli, da Auditoria Cidadã da Dívida para uma conversa AO VIVO com a Coordenadora da Assufrgs Berna Menezes. O bate-papo durou 2 horas, e está disponível na íntegra para assistir ao final deste texto. Foram diversos pontos importantes levantados por Fattorelli e que colocam uma luz no desvio de dinheiro público para os bancos privados. Elencamos aqui alguns trechos importantes:

A armadilha na PEC do Orçamento de Guerra

A PEC 10/2020, conhecida como Orçamento de Guerra, que agora volta à Câmara dos Deputados, esconde um problema sério, que agrava mais ainda o desvio do dinheiro público. Fattorelli ressalta que os “bancos estão pegando carona com a PEC10 e vão se livrar de uma papelada podre acumulada há 15 anos. É um oportunismo que não tem nada a ver com a crise do coronavírus. Os bancos receberam de cara R$1,2 trilhões e se essa PEC passar eles vão ganhar mais alguns trilhões. É uma lavagem de papel podre dos bancos que será paga com que dinheiro? Será paga com o sacrifício das áreas essenciais como previdência, educação, saúde, e não será suficiente, ainda iremos ver o aumento da dívida pública. Precisamos deixar muito registrada essa denúncia, se essa PEC passar vão jogar a culpa ainda nos servidores públicos, nos R$600 reais dos pobres, uma valor de miséria que nem chega ao salário minimo, nos hospitais de campanha, etc. Estamos sendo muito enganados nessa história.”

Crise fabricada

Maria Lucia, ainda comenta como a crise econômica no Brasil foi fabricada pelo governo, para poder aprovar contrarreformas e aumentar as privatizações. “A EC95 foi aprovada na esteira da crise de 2015, uma crise em decorrência da política monetária suicida do Banco Central. que elevou as taxas de juros para mais de 14% e ficou remunerando a sobra de caixa dos bancos, provocando escassez de moeda que chegou a mais de R$1 trilhão. Naquela época nós não tivemos nenhum fator que produzisse crise. Essa crise foi fabricada. Diante da crise, aprovaram a reforma trabalhista, retrocedendo os direitos trabalhistas anterior a Getúlio Vargas, aprovaram a EC 95 do Teto de Gastos e depois a reforma da previdência. Foi essa crise fabricada que jogou milhões de brasileiros no desemprego e as arrecadações caíram abrindo também discurso para a reforma da previdência.”

Apelo à população

Fattorelli faz um apelo para que a população, os sindicatos, os movimentos sociais e mídia alternativa abracem as informações sobre o sistema da Dívida Pública e lutem contra ele. “Alguém já ouviu falar que falta dinheiro para pagar juros? Emitem título, pagam o juro e registram como se fosse amortização. Se as pessoas não se interessarem pelo estudo aprofundado desse privilegio da dívida, desses mecanismos que criam dívida pra gente pagar, utilizada depois como desculpa para os cortes cada vez mais aprofundados, privatizações, contrarreformas… Ou a sociedade enxerga o que está por trás da dívida ou vamos continuar nesse modelo que só produz escassez, só aprofunda retirada de direitos. Temos que virar esse jogo, chega!”

Fattorelli ressalta a trapaça contida na PEC 10, que cria um novo mecanismo no sistema da dívida pública “Agora, se a PEC 10 passar, teremos outro exemplo, a papelada podre dos bancos vai ficar no balanço do banco central e o banco central vai pagar com o título da dívida publica. A dívida vai crescer trilhões sem nenhuma contrapartida para a população. É preciso pressionar deputados federais para rejeitar essa parte da PEC10. É um escândalo, uma trapaça. Querem colocar o banco central para atuar no mercado de balcão, comprando papelada podre de bancos e transformando em dívida pública que nós vamos ter que pagar.”

A ASSUFRGS ressalta a importância de aderir à campanha de pressão aos deputados federais, para que retirem do texto da PEC do orçamento de Gastos esse trecho que possibilita a compra de títulos podres dos bancos privados pelo banco Central. No site da Auditoria Cidadã da dívida tem uma carta aos deputados, que pode ser encaminhada por todos aos e-mails dos deputados federais. Baixe o documento aqui e pressione os parlamentares.

O problema não é a dívida, é o uso indevido

Berna Menezes pontuou que a dívida em si não é problema. Os estados podem e devem fazer dívida, o problema é quais as condições de pagamento e qual o uso desse dinheiro. Fattorelli concordou: “Ha 20 anos estamos estudando a dívida pública, a bibliografia sobre esse tema é super escassa. A auditoria é a investigação dos documentos, dos contratos, acordos, estatísticas oficias e ao pesquisar esses documentos fonte, o que nós provamos? O endividamento regular, que o estado se endivida para fazer investimentos de interessa da população é gota d’água no oceano. O que nós encontramos é a atuação de uma série de mecanismos em que o estoque da dívida cresceu porém não tem aumento de recurso nos cofres públicos, o dinheiro vaza diretamente para o mercado financeiro.”

A coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida explica como funciona o principal mecanismo do sistema da dívida. “No caso da dívida federal, atualmente, o mecanismo mais escandaloso é o da remuneração da sobra de caixa dos bancos. A sobra de caixa é o dinheiro de todos nós, das nossas contas do banco, nossos salários, poupança e investimentos. Os bancos têm que separar um pedaço, para dar garantia, o restante cerca de 80% de todo o dinheiro, de todas as pessoas, cria uma bolada, que em março estava em trono de R$1trilhão. O que os bancos deveriam fazer? No mundo inteiro os bancos correm atras das empresas e pessoas para emprestar esse dinheiro, mesmo que seja a juro baixinho, preferem emprestar do que ficar com esse dinheiro parado. Aqui no Brasil o Banco Central aceita o depósito dessa bolada de 1 trilhão, sendo remunerado diariamente. Teve ano que o governo gasta com isso quase R$200 bilhões, só para remunerar a sobra de caixa dos bancos. E como se dá essa remuneração? O banco faz um depósito voluntário no banco central, que não tem amparo legal, já tentaram legalizar em um projeto de lei em 2017 que ainda não vingou e em outro em 2019, que ainda não tramitou. A outra tentativa foi com a PEC 10, que conseguimos tirar do texto a questão do depósito voluntário remunerado. É um escândalo gente.”

Fatorrelli ressalta os impactos negativos desse sistema. “Essa operação, além de custar uma bolada, que em dez anos custará R$1trilhão dos cofres públicos, é extremamente danosa para a economia, pois gera escassez de moeda e o juro de mercado bate esse recorde indecente. O juros de mercado do Brasil é maior do mundo! Por isso que os negócios aqui não deslancham. Por isso que as empresas quebram. Jogam o povo no desemprego. Eu pergunto à vocês: esse trilhão de títulos da dívida pública, que é usado só para remunerar a sobra de caixa dos bancos, pode ser realmente chamado de dívida pública? De forma alguma. Isso é o mal uso da dívida pública. Isso é a usurpação do endividamento público para atender o interesse leviano dos bancos, de ter a sua sobra de caixa remunerada, de forma parasitária. Isso que é parasita. esse dinheiro remunerado diariamente nem é dos bancos é dos depositantes, das pessoas jurídicas e físicas, ganham dinheiro público em cima de um valor que nem é deles. Uma coisa é endividamento público, regular, para aplicar o interesse da população, outra coisa é esse esquema que usa o endividamento público para transferir dinheiro para os bancos. esse é o maior exemplo atual do sistema da dívida pública.”

Indícios que parte da dívida prescreveu

Durante a conversa Maria Lucia Fattorelli ainda destacou os exemplos positivos da Auditoria Cidadã no Equador e na Grécia e resgatou alguns indícios de que grande parte da dívida no Brasil prescreveu na década de 90. “A auditoria deveria ser uma rotina. Getúlio Vargas fez auditoria na década de 30, ele apurou que apenas 40% do estoque de toda a dívida tinha respaldo contratual. 60% nem contrato tinha. Na época os bancos internacionais chegaram a argumentar que mandavam a fatura mesmo sem contrato, pois o Brasil pagava sem argumentar. Simples assim. Mandam uma conta e os idiotas pagam. Quem deve tem a obrigação de saber o que está pagando. É o que acontece hoje. Por trás da chamada dívida pública estão vários mecanismos. Há uma fortíssima suspeita que a dívida externa do Brasil com os bancos internacionais, prescreveu em 1992, como ocorreu com o Equador, onde fizemos auditoria e provamos isso. Porém aqui no Brasil essa dívida podre foi transformada em títulos novos. Parte foi transformada em dívida interna no inicio do plano real, com juros maiores, e outra foi aceita como moeda para comprar empresas públicas, como a Vale. Metade da Vale foi paga com papeis podres. A dívida se relaciona com toda a economia.”

Confira a íntegra da transmissão AO VIVO da Assufrgs. Uma verdadeira aula de orçamento público e a importância da Auditoria Cidadã da Dívida: