Artigo – “Autonomia e paridade: desafios à democracia universitária” (por Fernando Nicolazzi)
Artigo de Fernando Nicolazzi, Professor do Departamento de História da UFRGS, originalmente publicado no site Sul 21.
A recente intervenção do deputado Bibo Nunes na UFRGS, atropelando os processos institucionais realizados pela comunidade acadêmica e ferindo sua autonomia prevista pela Constituição Federal, escancarou a falta de compromisso do Governo Federal com a democracia universitária que, de resto, é uma falta de compromisso com qualquer tipo de democracia. Além disso, o fato tornou explícito o grau de cumplicidade de setores minoritários da universidade com as medidas autoritárias realizadas pelo Poder Executivo Federal.
Essa indignante situação, porém, também recolocou no centro do debate, agora de forma mais urgente do que nunca, a reflexão sobre as condições adequadas para exercício da democracia na instituição. Pois, se o enfrentamento contra o autoritarismo intervencionista deve ser feito em defesa dos princípios democráticos da universidade, ele também exige que a comunidade acadêmica encontre meios possíveis para a criação de uma unidade que atue como contraponto aos ataques de que ela é alvo, cujo ímpeto certamente se intensificará daqui por diante.
Um dos principais desafios para se encaminhar tal reflexão é aquele que diz respeito aos temas da autonomia e da paridade, bem como as possíveis relações entre ambas. E estes são temas centrais na atual conjuntura porque é justamente a autonomia o que está em risco com a intervenção e, também, porque o resultado da última consulta realizada para a definição do reitor (ou reitora) na UFRGS mostrou como a paridade é um debate hoje incontornável em qualquer discussão política sobre a democracia acadêmica.
Por tais razões, gostaria de oferecer um argumento defendendo que, para a consolidação de uma relevante unidade no âmbito da comunidade acadêmica, é necessário pensar a articulação entre autonomia e paridade como temas correlatos e não incompatíveis entre si. Para tanto, enfrentarei algumas posições contrárias a este argumento e, em seguida, indicarei os motivos pelos quais o considero adequado diante da grave situação a que fomos à revelia submetidos.
Antes de mais nada, é preciso recusar desde logo a sugestão de que a discussão sobre a paridade é algo recente e que ainda não foi devidamente debatida nas instâncias da universidade. Essa sugestão, embora repetida reiteradamente por pessoas contrárias a ela, não resiste à análise dos fatos. O assunto vem ocupando um espaço cada vez mais crescente há vários anos dentro da UFRGS. Considerá-lo como ainda prematuro apenas revela um real desinteresse por essa discussão ou, no pior dos casos, uma incapacidade de escuta a demandas recorrentes que são colocadas pelos três segmentos da comunidade acadêmica em defesa da paridade.
Mas os argumentos contrários à paridade também se amparam em discussões menos falaciosas. Uma delas diz respeito ao fato, irrecusável por quem quer que seja, de que há um texto legal, promulgado em 1995, que normatiza o processo de escolha dos dirigentes universitários no Brasil. Como se sabe, a Lei 9.192 prevê que cabe ao Presidente da República nomear o Reitor ou a Reitora a partir de uma lista tríplice elaborada pela própria instituição universitária por decisão de seu colegiado máximo (no caso da UFRGS, o Conselho Universitário), o qual deverá necessariamente ser composto por docentes em uma proporção de, no mínimo, 70% do número total de membros. A mesma lei define igual proporcionalidade para o caso de consultas prévias à comunidade que possam orientar a posição dos conselheiros.
Trata-se de um argumento que se ampara plenamente no campo da legalidade e que deve ser enfrentado com atenção, pois ele tangencia também as próprias relações entre autonomia e paridade. Afinal, haveria alguma contradição entre o texto legal e a carta constitucional no caso específico da escolha dos gestores acadêmicos? A própria Constituição dirime qualquer dúvida, pois a gestão democrática feita nas universidades deve se dar “na forma da lei”, como bem lembram as posições contrárias à paridade. Nesse sentido, até que a lei de 1995 seja alterada, cabe à comunidade acadêmica cumpri-la. Afinal, autonomia não deveria equivaler à soberania, cabendo esta ao corpo mais amplo dos cidadãos e não apenas aos indivíduos pertencentes à universidade.
Quanto a isso, gostaria de me deter justamente na maneira como está enunciada na Constituição a questão levantada, ou seja, o trecho “gestão democrática do ensino público, na forma da lei”. Ora, o que significa cumprir algo “na forma da lei”? Significa considerar que determinada ação, ao ser realizada, está de acordo com a norma legal. O que cabe destacar é que essa consideração é feita a partir de um gesto interpretativo que coteja a ação à norma. O que a experiência mostra é que tal interpretação, sem estar necessariamente contrária à lei, pode assumir perspectivas distintas. É possível explicitar isso a partir de duas notas técnicas emitidas pelo Ministério da Educação em contextos significativamente distintos, tratando da mesma questão: o vínculo da paridade com a lei de 1995.
Em 2011, a nota técnica 437 estabeleceu que as instituições que decidirem realizar consultas informais à comunidade para orientar a decisão do colegiado, chamadas a partir de associações ou entidades equivalentes, de acordo com a proporcionalidade que considerarem mais adequada, sem necessariamente respeitar o percentual mínimo de 70% para docentes, não estarão em desacordo com qualquer norma posta. Ou seja, em 2011, quando o MEC era ocupado pelo professor Fernando Haddad, havia o entendimento de que, respeitados os critérios definidos na referida nota (consulta informal), a paridade era uma possibilidade que estava na forma da lei, algo confirmado, inclusive, pela Procuradoria Federal em parecer provocado por solicitação da Unifesp, em 2015.
Por sua vez, em 2018, no apagar das luzes do governo Michel Temer e um pouco antes da posse de Jair Bolsonaro na presidência da República, o MEC emitiu a nota técnica 400, revisando aquela de 2011 e não reconhecendo mais a possibilidade da comunidade acadêmica se organizar de forma autônoma para a realização de consultas informais, vinculadas ao processo eleitoral, que pudessem amparar as decisões realizadas em suas instâncias superiores. Embora a lei de 1995 não tenha sido alterada, seu entendimento foi modificado a partir de uma outra realidade política, quando Rossieli Soares, hoje Secretário de Educação no governo de João Dória, era o Ministro da Educação.
Ou seja, sem se alterar a lei, mudou-se a interpretação política da “forma da lei”. O entendimento do MEC definido em 2018, modificando o que o mesmo órgão havia estabelecido sete anos antes, não tinha por pretensão nenhuma proposta de ação para o governo Temer, que se encerraria alguns dias depois. Pelo contrário, foi tão somente uma medida para abrir possibilidades de intervenção para o governo, de reconhecida antipatia pelas universidades, que assumiria logo em seguida. De forma alguma o que estava em jogo era a “gestão democrática do ensino público”, mas justamente uma interpretação da lei visando coibi-la.
Portanto, o que sustento é, primeiro, que a escolha pela paridade reside em uma interpretação da lei que não a desrespeita e, segundo, que a gestão democrática “na forma da lei” pode ser feita a partir de consultas paritárias junto à comunidade. Essa posição se fundamenta ainda no parecer jurídico 416/2019 da CONJUR-MEC, que indica que “a votação paritária nas consultas à comunidade universitária tem fundamento constitucional nos princípios da gestão democrática do ensino público e da autonomia administrativa”.
Assim, a demanda pela paridade se vincula à defesa da autonomia sem, contudo, arrogar-se qualquer princípio de soberania que porventura pudesse equivaler ao não cumprimento da legislação. Paridade e autonomia são temas correlatos, não antagônicos. O argumento que sugere o caráter inconciliável entre elas carece de melhor sustentação jurídica, tornando-se apenas uma posição política particular.
Finalmente, um outro argumento contrário à paridade reside em uma compreensão de universidade que, pelo menos no caso da UFRGS, me parece em desacordo com o que ela realmente é. Tal compreensão resume a finalidade da instituição à produção de conhecimento (pesquisa) e à formação de recursos humanos (ensino) e separa, hierarquizando, as pessoas que fazem parte da comunidade universitária de acordo com suas respectivas atuações para tal finalidade. A paridade, nesse sentido, seria contrária à hierarquia institucional que, segundo essa compreensão, precisa ser mantida para que sejam cumpridos de forma adequada os fins aos quais se destina a universidade.
Ocorre que tal argumento situa apenas os estudantes e os docentes no âmbito das atividades-fim, separando os primeiros dos segundos em função do seu tempo de permanência na instituição: estudantes são, em tese, temporários; docentes são, em tese, permanentes. Digo em tese porque, na prática, tal distinção poderia ser matizada a partir de diversos exemplos concretos, mas podemos mantê-la como tese para o momento. De qualquer forma, ela serve para sustentar os pesos diferenciados entre estes dois segmentos considerando apenas as individualidades que os constituem, não seu caráter coletivo.
Mas gostaria ainda de questionar com mais vagar a classificação genérica de servidores técnico-administrativos como não ligados diretamente à finalidade da instituição, ocupando a posição de meio para que tal finalidade possa ser realizada. Meu argumento deveria ocupar mais espaço problematizando o que significa produzir conhecimento e quais são suas condições sociais e institucionais em uma universidade, além de indicar como a não mencionada extensão universitária se encaixa nas atividades-fim e quem a realiza. Na impossibilidade disso, vou apenas indicar alguns exemplos que permitem contestar tal classificação.
Em 2019, a UFRGS abriu edital para preenchimento de cargos técnico-administrativos (Edital 09/2019). Duas das vagas eram para, respectivamente, engenheiro (na área da engenharia física) e engenheiro agrônomo. Na descrição das atribuições, constam no edital as atividades de desenvolvimento de projetos e, particularmente na vaga da área da agronomia, previa o planejamento e o controle de “técnicas de utilização de terras, para possibilitar um maior rendimento e qualidade dos produtos agrícolas”. A atuação destes servidores não estaria diretamente ligada à finalidade de produção de conhecimento? Creio que sim.
Em 2018, outro edital para cargos técnico-administrativos (01/2018). Entre as diversas vagas, eu destaco duas. A de geólogo, cujas atribuições previam “realizar investigações sobre a constituição, estrutura e história da crosta terrestre, através de estudos e experiências no campo das ciências geológicas”, e a de psicólogo, cuja função seria “estudar, pesquisar e avaliar o desenvolvimento emocional e os processos mentais de indivíduos, grupos e instituições, com a finalidade de análise, tratamento, orientação e educação”. Novamente aqui me parece difícil negar que tais servidores atuem integralmente para cumprir a finalidade de produção de conhecimento.
Os exemplos poderiam se multiplicar, inclusive trazendo para o debate atividades extensionistas, mas o ponto já está colocado: o argumento teórico que contraria a defesa da paridade com base na classificação e na hierarquização dos segmentos acadêmicos conforme as finalidades da universidade (ensino, pesquisa e, nunca é demais lembrar, extensão) encontra dificuldades para se sustentar no plano empírico, sobretudo no que diz respeito à distinção entre servidores docentes e servidores técnico-administrativos. Afinal, do ponto de vista do funcionamento prático da instituição, ela própria reconhece que ambos podem possuir como função desenvolver atividades de produção de conhecimento e mesmo de educação.
Assim, admito a legitimidade dos argumentos contrários à paridade aqui expostos, embora eles me causem certa impressão de elitismo acadêmico. Creio, porém, que são pouco convincentes em seus conteúdos e, do ponto de vista político, funcionam como um deliberado obstáculo para a formação de uma unidade que fortaleça a comunidade universitária diante de posições intervencionistas e diante da cumplicidade de setores internos a ela com os arroubos autoritários do Governo Federal.
Na UFRGS, os segmentos dos estudantes e dos servidores técnico-administrativos têm se notabilizado pelas diversas posições em defesa da autonomia universitária e pelas constantes atividades de resistência contra a intervenção e, sobretudo, contra a imposição de modelos privatistas de universidade que coloquem em risco sua dimensão pública. A paridade é uma demanda histórica e justa de tais segmentos.
A defesa da autonomia universitária com paridade, então, pode ser uma bandeira comum que unifique os interesses de estudantes, servidores técnico-administrativos e docentes unidos pela concordância em relação à gravidade da situação. Num momento em que é preciso unidade em defesa da universidade pública, plural, democrática e efetivamente comprometida com interesses sociais, sugiro que esta possa ser uma das bandeiras a serem empunhadas pelo conjunto da comunidade universitária.