O sistema discriminatório perverso da PEC dos Precatórios
Por Rogério Viola Coelho*
A PEC 23/2021 institui um regime de exceção por dez anos para o pagamento dos precatórios judiciais pela União. Um regime lesivo a cada ano de um universo de 100 mil pequenos credores, fixando um teto de gastos anual bem inferior aos montantes habilitados. Um teto próximo de 20 bilhões em 2022, muito inferior aos 89 bilhões habilitados, abrangendo créditos previdenciários e de servidores públicos, além de milhares de pequenos empresários.
Com este teto de gastos anual rebaixado, a Emenda vai conduzir ao esvaziamento de direitos individuais que são reconhecidos como direitos fundamentais substantivos. As ações contra a União são convertidas em um processo de exceção, sem efetividade, imposto só para os credores legitimados por decisão judicial. Enquanto isto a própria União e todos os demais cidadãos seguirão garantidos pelo devido processo legal para cobrar seus créditos, inclusive sobre as pessoas lesadas pela Emenda proposta.
O sistema de precatórios vigente constitui uma garantia institucional para a tutela jurisdicional dos credores porque torna obrigatório o pagamento, em cumprimento a Constituição. Como os valores habilitados ingressam nos seus patrimônios individuais com a decisão judicial, o novo sistema institui objetivamente um empréstimo compulsório dissimulado com sua reapropriação. A PEC invoca a insuficiência de recursos orçamentários para atendimento dos auxílios emergenciais decorrentes da calamidade pública instaurada no País. Tal procedimento é feito à margem da Constituição, que autoriza a União a instituir empréstimos compulsórios – “para atender a despesas extraordinárias decorrentes de calamidade pública…” (art. 148).
O empréstimo regulado na Constituição não permite “instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situações equivalentes”, proibindo “qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida”. O regime de exceção projetado pela PEC, incide sobre trabalhadores indefesos e pequenos empresários. Discrimina pessoas em situação muito inferior à dos grandes bancos, que ostentam lucros multibilionários a cada trimestre, e poupa as empresas que mais lucraram com a pandemia, como o agronegócio e as empresas farmacêuticas. No empréstimo compulsório regulado pela Constituição é fixado prazo certo para restituição da integralidade dos valores devidos (§ único, art.15, CTN). Já o sistema projetado pela PEC institui um concurso de credores que conduz ao confisco da quase totalidade dos valores apropriados arbitrariamente.
Ao alterar o processo de cobrança da União na sua fase final, a Emenda institui para os seus credores, por longos anos, um processo judicial ad doc sem efetividade. Um processo de exceção que importa na violação do direito ao devido processo legal, assegurado a todos os cidadãos (art. 5º, LIV). Um processo que gera inadmissível obstrução ao direito fundamental de acesso à justiça para um grande grupo de desprotegidos (Art.5º, LIV e XXXV). Ambos são direitos fundamentais procedimentais que garantem os direitos fundamentais substantivos e a tutela jurisdicional efetiva dos demais direitos.
Tendo as Emendas natureza de lei, de nível superior, sua aprovação configura notória discriminação na edição da lei. Ao suspender o direito ao devido processo legal dos credores da União certificados por decisões judiciais, impõe a um universo determinado de pessoas uma brutal desigualdade na aplicação da lei. Desigualdade na aplicação da lei, primeiramente em relação a União, que seguirá dispondo da execução fiscal sobre eles, inclusive na cobrança de taxas de serviços públicos. Desigualdade, também, em relação a todos aqueles com quem as pessoas discriminadas contraem dívidas, que são garantidas por ações executivas. Os segurados da previdência e servidores públicos – que têm nos créditos sobre a União seu único ou principal meio de vida – seguirão expostos a execuções coercitivas de seus fornecedores de alimentos, serviços públicos e bancos. Instituições que seguem aparelhadas com execuções de máxima coercividade na cobrança de empréstimos imobiliários e de empréstimos consignados acumulados.
O texto constitucional confere prevalência à garantia do exercício dos direitos fundamentais, considerada obrigação fundamental dos poderes constituídos, que foram submetidos ao direito com o advento do Estado Constitucional. Para isentar o Estado, a PEC adota a concepção originária do Estado de Direito Liberal, quando era o próprio Parlamento que decidia sobre a conformidade das leis que editava com a Constituição, podendo ainda alterá-la sem restrições. Esta ideia, que remanesce como ideologia na cabeça dos juristas liberais, leva a inverter o sentido da tutela devida pelos poderes constituídos aos direitos fundamentais, passando os titulares destes direitos, situados na base da sociedade, a prestar tutela ao Estado, através de empréstimos a fundo perdido.
*Rogério Viola Coelho é advogado, presta consultoria e assessoria jurídica a entidades sindicais, especialmente a ASSUFRGS e a ANDES/UFRGS, bem como atendimento particular a servidores públicos e trabalhadores.
Foto em destaque: Marcello Casal Jr/Agência Brasil